quarta-feira, 24 de outubro de 2012

E os heróis se fizeram carrascos... Só que não.


Ah, nossa costume de fazer heróis...

Há mais ou menos um mês e meio começou o julgamento do mensalão e, logo, o ministro Barbosa ganhou destaque tanto por seu histórico de vida quanto pelo seu julgamento aparentemente inflexível e correto, satisfazendo grande parcela da população brasileira. Ele logo seria chamado de Batman e “herói da toga preta”. Depois de poucas semanas seus colegas também começariam a ser chamados de heróis por alguns, virando assim “os vingadores patriotas”. Eu nunca concordei com essa postura, nunca.

Quando se faz de alguém um herói presume-se que todas as suas atitudes são norteadas por motivos nobres, por intenção de fazer o bem supremo acima de tudo. Presume-se uma certa ausência de “defeitos” (se é que podemos usar esse termo) e a impossibilidade de não agirem com o bem em seus corações. Em resumo: nós, lindos seres humanos, não podemos ser heróis.

Agora, desde o início dessa semana, os heróis se tornaram renegados e o julgamento do mensalão, antes visto como o nobre campo de batalha dos nossos heróis, agora é o cadafalso dos temerários e hipócritas assassinos de índios.

Não há mais vingadores. Não há mais Batman. Não há mais patriotismo.

Ahh, nossa moral de folhetim...

sábado, 15 de setembro de 2012

Crônicas do Esquecimento #3: Lampião a Gás


- Beto, já consertou o lampião?

- Oi?

- Perguntei se já consertou o lampião.

- Ah sim. Não, ainda não.

“A noite e escura e cheia de horrores”, assim ele lembrava de ter lido em algum lugar. Mas lá as noites, mesmo as mais escuras, possuíam algum brilho, algum encanto, e os horrores eram sombras, monstros e mortos. No caos que se tornou a vida real as noites, mesmo as enluaradas, eram breus de desespero e os horrores eram os homens, os animais e a fome. Para afastar as trevas era necessário que se fizesse a luz, mas o lampião havia quebrado e restava apenas um toco quase morto de vela. Em breve estariam sós; ele, Bárbara e o bebê ainda sem nome em breve seriam beijados pela escuridão de uma noite nublada.

Para sua negativa não houve resposta falada, só um consentimento pessimista mudo. Fora o barulho feito enquanto tentava consertar o lampião o silêncio era absoluto. Até os grilos pareciam ter se calado frente à atmosfera tensa dos últimos meses. A sujeira de dias se acumulava em suas roupas, em seus utensílios e em seu corpo, mas já não ligava tanto. Enquanto tivessem água, comida e luz tudo estaria bem. Pelo menos não morreriam de desnutrição ou sede, como soube que vinha acontecendo em vários lugares.

- Sabe Beto, - ela quebrou o silêncio – às vezes acho que isso é só um pesadelo.

- Hum...

- Quer dizer... putz, todas as máquinas que trabalham com qualquer princípio inteligente...

- Automático ou de armazenamento de energia...

- Sim, que seja, enfim, todas elas pararam de funcionar! Isso é coisa de filme cara! Isso é coisa de filme Cult, sabe? Que aquela galerinha estranha curte...

- Curtia.

- Pare de me corrigir! Porra, tô aqui tentando quebrar esse silêncio desgraçado e você fica aí fazendo pouco caso, me corrigindo! Quer silêncio? Pois vá, saia sozinho, só deixe o lampião comigo!

- Bá, pare com isso.

- Ah, agora tá ruim, é?

- Você vai acordar o bebê.

- O beb- Ih, o bebê! Meu Deus, como pude esquecer do bebê?!

- Você o que?!

- Não, calma, ele tá aqui, só tinha me esquecido da existência dele.

- Você esqueceu de seu filho?! Não se esquece que um filho existe!

- Nosso filho. NOSSO filho, Beto. Você constantemente parece esquecer que teve uma função fundamental pra que ele existisse.

- Bá, você sabe que...

- Ah, não venha com essa de não saber se você é o pai! É claro que é você!

- Bá... não quero mais falar sobre isso.

- Não quer mais? Mas vai ter que ouvir! Eu estou cansada, Beto! Não aguento mais andar, andar, amamentar, andar, comer mal, andar, dormir debaixo de um teto qualquer, com medo, insegura, com um bebê...

Pensou em dizer algo como “então morra!”, mas se conteve.

- Bá... me desculpe. Vamos achar um lugar pra ficarmos em segurança.

- Esse lugar não existe, Beto. Não vamos nunca mais ficar em segurança, você sabe, você mesmo me disse isso! Deus... não sei porque continuamos vivendo!

- Bá, o bebê...

- Ele tá aqui, não acordou, fique tranquilo.

Ele olhou pra a vela, estava muito mais curta do que se lembrava, tinha que consertar logo o lampião ou caso contrário passariam toda a noite no escuro.

De repente teve uma sensação de deslocamento, como se nada fosse real, como se tudo fosse um sonho, e lembrou que não sabia como ajeitar aquele lampião. Iriam passar a noite no escuro.

- Bá...

- Shh! O bebê!

- Olha... eu acho que...

- Vai acordar o bebê! Fale baixo!

- ... vamos passar a noite no escuro.

- Acho que ele fez cocô... deixa eu olh– AHH!

- O que foi?!

- Beto, ele... ele... Beto, ele tá morto!

- O que?! Não é possível! Ele tava bem hoje de manhã! Deixa eu ver aqui, me dá ele!

Não apenas o bebê estava morto, mas estava se decompondo a olhos vistos, até ele, que era leigo, sabia que era algo de mais de uma semana.

- Bá, como... como não percebemos?

Ela, em lágrimas, não respondeu.

- Bá, me lembro que você o amamentou hoje! Bá, não... não entendo!

E numa rajada de vento, o que havia de chama se apagou.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Crônicas do Esquecimento #2: Ecos


- Rápido, a antena! Consertem a antena!

Gritava comandos como esse todos os dias agora, embora soubesse que pouco ou nada adiantava: as máquinas já não funcionavam de acordo com a vontade dos homens. De nada adianta consertar o que não está quebrado.

Há um mês as máquinas começaram a não executar suas funções. Há um mês a humanidade voltava gradativamente à Idade Média. Religiões começaram a anunciar o fim dos tempos (ou será que nunca pararam?), o êxodo urbano surpreendia cada vez mais, cidades industriais iam pouco a pouco se tornando cidades-fantasma. Também nunca se tinha visto índices de suicídio e homicídio tão altos na história da humanidade.

Caos, caos total e interminável. E ele ali, em relativa paz com o que sobrou de seu time de técnicos e engenheiros dentro daquele habitat hermético da NASA.

- A antena! Não podemos ficar sem contato com os astronautas!

Mas sabiam que a uma altura daquelas já deveriam estar mortos. A não ser que as máquinas não estivessem se recusando a trabalhar fora do planeta...

Essa mais recente expedição à lua foi um erro, em sua opinião. “É necessário reafirmar a América como líder mundial e, por que não, do sistema solar!” disse seu diretor na cerimônia de lançamento da espaçonave Icarus III. Onde estava ele agora? Deitado sobre sua mesa, com pequenos pedaços de seu cérebro e sangue espalhados pelo carpete azul de sua sala, iniciando o processo de decomposição.

- Vamos, a antena, merda!

Mas sabia que tudo o que fizesse seria inútil.


***


A comunicação com a Terra estava cortada há três dias, o sistema de reciclagem de oxigênio estava quase parando, não havia mais água potável, mas haviam chegado à lua novamente. 

“Não importa que tenhamos chegado aqui se todos amos morrer de fome, sede ou asfixia! Temos de tentar consertar nossos sistemas de sobrevivência!” insistia um de seus colegas. 

Mas nada havia para ser consertado.

Não tinham como sair dali, ela bem sabia.

Por isso ali estava, sozinha e com um dos poucos objetos eletrônicos (além dos trajes e luzes elétricas) que ainda funcionava. Desplugou o canal de áudio interno e conectou seu pequeno e antigo I-Pod.

Nesse momento uma sombra se fez perceber nas areias pálidas, ao seu lado. Era ele. Abraçaram-se longa e desajeitadamente, por causa dos trajes, mas, através do capacete dele, ela pôde ver o sorriso que tanto gostava encimado por aqueles olhos ora sérios, ora brincalhões, mas sempre sinceros.

Um não podia ouvir o outro, mas a música que tocava em seu traje falava por ambos e se comunicava em ecos intermináveis com a infinitude escura, fria e amedrontadora que os rodeava.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Crônicas do Esquecimento #1: Linha de Montagem


Ao soar da sirene as portas da montadora se abriram para a troca de turnos. O sol começava a se erguer por sobre a familiar camada de poluição que encobria maternalmente aquela cidade. Dos ônibus desciam os trabalhadores que, como nos últimos anos, vestiriam seus uniformes, operariam as prensas, soldas e moldes, teriam um breve horário de almoço, voltariam aos seus postos, suariam, teriam cãibras, dores nos olhos e costas, tomariam um rápido banho gelado, vestir-se-iam de homens e iriam para suas casas na esperança de sexo, alimento, descanso e dinheiro no fim do mês. Tudo perfeitamente dentro dos conformes.
Assim José vivia. Assim tudo funcionava perfeitamente.

A manhã transcorreu na mais perfeita monotonia: soldas, prensas, moldes e suor. O almoço teve o mesmo gosto cinza de todos os outros almoços, com as mesmas conversas e as mesmas pessoas. Corria tudo dentro dos conformes.

Até que no início da tarde, enquanto José e seus companheiros de sempre se preparavam para voltar pras posições, protelando ao máximo este evento inevitável, um silêncio súbito, seguido por uivos raivosos (ou seriam alegres?) tomou conta do galpão. Confuso, José ficou parado onde estava.

“As máquinas pararam!” ouviu alguém dizer em uma plataforma mais à esquerda. Não entendia. Como era possível todas as máquinas pararem ao mesmo tempo? Perguntou isso ao operário a sua direita. “Não é.” foi a simples resposta que recebeu. Estava confuso.

Pela primeira vez em muitos anos de trabalho, correu até o seu posto e tentou operar a solda. Nada. Pegou o kit de manutenção e olhou os mecanismos em busca de alguma falha. Nada. Via seus colegas fazendo o mesmo, também sem sucesso. “Talvez seja uma falha nos comandos a fábrica” disse entre os dentes, meio ansioso para que fosse verdade, mas desejando que fosse mentira. Odiava o trabalho que tinha, mas sem trabalho não havia dinheiro e dinheiro era necessário para acalmar as ânsias da mulher, par pagar a escola dos filhos e para relaxar no bar do Caçula no domingo... portanto tinha que trabalhar!

Entre o burburinho e os uivos esporádicos, os autofalantes da fábrica reproduziram a voz esganiçada do diretor: “Atenção todos os operários! Pedimos que se mantenham calmos e permaneçam em seus postos. Aparentemente estamos passando por dificuldades técnicas nos comandos centrais da fábrica, porém dentro de pouco tudo estará resolvido Agradecemos a cooperação de vocês”.

José sentou, esperou e, em pouco tempo, cochilou.

***

Daniel estava ficando louco. Havia três semanas que tentava, em vão, reprogramar e colocar todas as máquinas da fábrica em funcionamento. Os diretores faziam pressão, mas não havia nada que pudesse fazer, era como se as máquinas se recusassem a aceitar os comandos. Três dos sete técnicos de sua equipe já haviam pedido a recisão do contrato depois da notícia que algumas outras fábricas ao redor do mundo começaram a parar sem razão, explicação ou qualquer defeito aparente. “Se nem a NASA sabe o que está acontecendo você acha que nós, meros técnicos provincianos, vamos conseguir consertar algo?” disse um deles após anunciar sua decisão.

Os prejuízos eram enormes: por dia bilhões de dólares deixaram de circular em forma de mercadoria, em uma semana um terço dos trabalhadores fabris tiveram de ser demitidos e os outros tiveram o salário tremendamente reduzido. As balanças comerciais ao redor do mundo estavam descompensadas, ninguém sabia mais o que fazer.

“Sabe de uma?” pensou Daniel, “eles é que tem razão! Nunca vamos consertar isso.”. Levantou-se, deixando todo seu material na sala de controle da fábrica vazia. Na noite só os grilos faziam barulho. Foi até o seu carro e girou a chave na ignição: nada, nem o mais rouco dos sons de partida.

O carro se recusava a executar sua função. 

domingo, 12 de agosto de 2012

Crônicas do Esquecimento


O dia amanhecia como havia amanhecido trilhões de vezes. Alguns iam dormir, outros acordavam. Tudo dentro dos conformes.

Em inúmeras casas despertadores despertavam sonhadores, trabalhadores, estudantes. Cansados, sonolentos ou irritados eles se levantavam para mais um dia da honrada jornada mecânica que fazia o mundo girar. Tudo dentro dos conformes.

Em alguns quartos pessoas que há muito não dormiam percebiam o sol nascendo e filtrando a escuridão.  Em outros se dormia sem o conhecimento do sol que nascia. Tudo dentro dos conformes.

Alguns momentos mais tarde os cansados, sonolentos e irritados se dirigiam para os locais de todo dia para realizar suas tarefas de todo dia e voltarem para casa insatisfeitos, deslocados ou frustrados, como todo dia. Tudo dentro dos conformes.

As ruas começavam a pulsar com a vida honrada e correta, enquanto a vida obscura se recolhia ou camuflava entre os demais. Vários rostos, corpos e mentes numa massa única. Tudo dentro dos conformes.

Mas não por muito tempo.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Soneto da Controvérsia


Bastou a chuva para ter que sair
Bastou a trégua para a guerra surgir
Bastou a terra para o rio fluir
Bastou a calma para a raiva rugir

Faltou um beijo antes do sol se pôr
Faltou carinho, afago, sossego, amor
Faltou acordo, só ficou a dor
Faltou amante, na cama ficou o calor

“Drenou minha vida
com sua partida”
Frase batida

No início me refugiava
Depois angústia gritava
Agora uma pequena batalha se trava


sábado, 14 de julho de 2012

Simulacro


Um pálido raio de sol passava por entre a fresta da persiana quebrada, denotando o dia nascente, a vida pulsante em suas correntes de rotina, o dever, a obrigação. Dentro daquelas paredes escuras, porém, nada disso poderia alcançá-lo.

“Este quarto é inexpugnável!” costumava dizer para si próprio ao perceber que o planeta completava mais uma volta em seu eixo. Naquele instante, porém, não percebia nada a não ser a tela de seu computador e os seus dedos teclando furiosamente nas letras de seu teclado. Por instantes tinha motivos para viver, interagir e ser alguém.

Ao lado de sua cadeira uma pilha de roupas sujas lhe fazia companhia. Cuecas da semana passada, camisas das ultimas vezes que saiu. A cama tinha o lençol revolvido de muito tempo e com manchas escuras de comida. Junto ao abajur um prato de lasanha meio comida ia sendo digerida lentamente pelos fungos. O ventilador ligado agitava aquele ar viçado, rançoso, de semanas sem banho ou limpeza, mas ele não se incomodava. Não sentia nada quando era importante.

O nome Victor Almeida Brancco pouco lhe dizia, foi o nome que lhe deram ao ser jogado nesse mundo odiosamente real, era um nome que ele amaldiçoava de corpo, alma e intestinos, pois lhe lembrava constantemente que não poderia escapar desse grande teatro de carne. Porém quando se tornava XxxXvIpErXxxX nada lhe era impossível, nada lhe atingia. Eventualmente conseguia ser alguém digno de nota.

Sua vida era um grande simulacro, ele e seu computador eram uma entidade só. “Deus In Machina!” era seu grito de guerra quando conseguia algo realmente digno de nota, como conseguir mais de cinco respostas enfurecidas a um comentário desnecessário no YouTube ou roubar  conta de seu arquirrival naquele jogo online. Ele se considerava supra-humano, uma entidade tecnológica, um mito.

O raio de sol ficou mais forte, mais fraco, sumiu. Ele continuava lá, sentado, suado, sujo, fedendo, nervoso. Cochilou, nada mais de interessante havia na internet.

Em seus sonhos uma multidão de mães vinham lhe trazer o sangue de seus filhos, um sem número de mulheres lhe ofertavam seu sexo, um milhão de pais lhe ofertavam frutas, dinheiro e suas filhas. “Deus in Machina”. Estava acima da vida e da morte, estava acima da civilização.

De repente um clarão.

Suas persianas estavam no chão, um sol amarelo e penetrante feria-lhe os olhos, uma silhueta lhe gritava, sacudia e batia. Ele gritava de volta, num choro gemido inútil e sem força. Ele era a merda, o lixo do mundo.

A conexão caiu.

domingo, 24 de junho de 2012

Uma carta


Estranho.
Ontem abri a minha caixa de correspondência e encontrei uma carta endereçada a mim. Não, não é esse o fato estranho, mas sim o conteúdo e a maneira com que a carta foi redigida (tinta preta, caneta hidrográfica, em letras calmas e redondas), além do nome do remetente (“Amor”).
Num primeiro momento jurei que era uma piada, alguma perturbação de amigo, essas coisas, então abri, bem-humorado, e li. O conteúdo dela é o que vem a seguir:

Caro humano,


Você (e toda sua espécie) me conhece. Ouve falar de mim desde que consegue se lembrar. Nas histórias infantis, nos desenhos animados, nas novelas, filmes, livros... eu sempre fui, sou e serei onipresente. Sou interpretado de várias formas, sou o álibi de todas as loucuras (boas ou más), sou o pai e a mãe de toda a humanidade, sou o caos e a morte de cada condenado. Não me importo que me concebam de várias formas, que me deem uma pluralidade de sentidos tortos, que me usem num ato de morte, pois, como dizem muitos de vocês, “o Amor deve ser livre!”. Livre, eu entendo, é ser o que se quiser ser. No meu caso é ser o que vocês, humanos, querem que eu seja.

Uma coisa, porém, me deixa preocupado: estão querendo me aprisionar, me enlatar e me jogar nas prateleiras. Como assim? Ora, olhe um pouco pra a população média ocidental! Experimente dizer que eu aconteço com o tempo, que posso ser algo casual, que posso não ser eterno, que posso nunca acontecer, inclusive! Essa concepção acerca de mim é rechaçada, combatida, anulada. “O amor estava predestinado entre X e Y!” “O amor é uma finalidade da vida!” é a resposta que você irá ganhar, meu caro.

Você provavelmente está se perguntando se isso não seria uma atitude paradoxal minha, dirigir a minha ira (sim, pois o Amor também pode ser Ódio) para uma forma de me conceberem. Digo-lhe que não, pois essa não é uma forma de me conceber, mas sim de encarcerar, de me reduzir, de me embelezar e, sobretudo, de me infantilizar! Me encarcera por  não tolerar outras interpretações, me reduz por me determinar, me embeleza porque não sou apenas rosas e corações, posso muito bem ser fera, afinal és animal e me infantiliza pois lhes infantilizam.

Necessito que se levantem vozes contra esse amor plástico que, descuidadamente, deixei gestar desde os primeiros hinos românticos e agora me prende e os escraviza. Necessito que digam que posso ser sujo, fera, mortal até. Preciso que me construam, cada um à sua maneira e ao seu tempo. Preciso que de fato AMEM e não simplesmente vivam numa ilusão ótica de uma realidade de cegos.

Abraços,
           Amor

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Um Lapso Momentâneo de Razão


A existência é efêmera.

O que nos é real e concreto hoje será memória amanhã e vácuo na posteridade. 

Nada dura para sempre em nosso mundo de concreto, aço e ferro.

Nada dura para sempre porque o “para sempre” é uma extensão infinita de tempo, e o tempo não existe. Só há “para sempre” enquanto algo existir, quer seja fisicamente ou imaterialmente.

“Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja eterno enquanto dure"

Palavras sábias.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Crônicas de uma Realidade: Ultimos Momentos de uma Velha Existência


Seus olhos fitavam o teto daquela caverna. Seria a última imagem que seus olhos captariam. Seu corpo velho e cansado entregara os pontos. Estava feliz.

Com ele morreriam as memórias, os conceitos, os gostos... com ele morreria o velho mundo, seus fundamentos e suas morais.

Se perguntava o que seria das crianças que tinham sobrevivido junto a ele, mas nada disso lhe importava mais. Já eram adolescentes, aprenderiam a se virar naquele mundo que, para ele, era hostil e desconhecido. Seriam forçados a tal. Enfim ele poderia morrer em paz.

Seus olhos fitavam o teto, mas nada mais enxergavam.

E naquela caverna escura, úmida e fétida jaziam mortos o Tempo, os Pilares, o bosque e tudo aquilo que fazia do mundo Mundo.


sábado, 12 de maio de 2012

Crônicas de uma Realidade: Caos


Nuvens negras, tão familiares, circundavam os pilares e desabavam.

A corrida para dominar os pilares fizera uma estrada de corpos por entre as árvores e arbustos e deixaram sua assinatura em sangue na areia. As duas pequeninas irmãs jaziam esmagadas aos pés do sustentáculo da esfera apagada.

Silêncio, escuro e morte.

Nada se movia, nada respirava.

À chegada dos três Tempos houve um pequeno suspiro e um reboliço no ar. Depois apenas houve o pasmo. Uma existência estéril se apresentava a eles e mexia com seus conceitos. Nem mesmo o Futuro escapou às palavras que lhe fugiram.

Árvores mortas e arbustos que se resumiam a raízes podres dominavam o antigo bosque verde, corpos enroscados em suas raízes e empalados em seus galhos. Recostada aos pilares estava uma figura esquálida e pútrida, de olhos abertas e sorriso morto. Eis o resumo da epopeia da destruição.

Passado, Presente e Futuro ali ficaram parados, quase sem respirar. O primeiro tremia de medo. Medo do silêncio, medo desse futuro, medo do que será. O segundo tinha lágrimas nos olhos e o vazio na mente. Seu mundo estava devassado. O terceiro tinha medo, lágrimas nos olhos e alívio.

- Ei-vos aqui. – disse o Oblívio repentinamente.

Ei-los ali. As quatro ultimas entidades da existência de pé na terra de ninguém, sob uma esfera cinza e morta.

- Acabe com isso! Acabe com a nossa monstruosa existência, como nossas faltas e desejos, com nosso egoísmo, com nós mesmos! – suplicou Futuro – Acabe com a dor! Acabe com...

- Já chega, velho! – interpôs Oblívio – Você me trata como filho, como empregado, como submisso às suas vontades. – e andando em direção aos pilares – Foram vocês que me chamaram? Sim. Mas mesmo que não me tivessem chamado eu viria, era hora. – agachou-se junto da figura morta recostada nos pilares – Isso aconteceria inevitavelmente, o diferente seria o como e quando. Esses pilares, esse bosque, vocês, eu... tudo é descartável. Sou um agente, o meio pelo qual se operam as mudanças, pelo qual se esquece e se recria. – ao seu toque, o corpo inerte deixou de existir – Vocês se julgam donos da esfera, não é? Então por que ficam sempre aqui? Por que desejam o controle dos pilares? Por que vivem em função deles? Vocês não sabem. Não sabem nem de onde vieram! Ignorantes que se pensam deuses – e olhando as nuvens escuras e a esfera morta mais acima sussurrou – Está chegando a hora.

Passado jogou-se no chão em desespero e lágrimas.

Presente continuou inerte.

Futuro sorriu.

E no lugar das trevas esperadas eles assistiram a uma cena. Algo que se passava na esfera.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Crônicas de uma Realidade: Oblívio #2

- O... o que você fez?! – Indagou Passado em seu desespero juvenil. Ondas de uma energia estranha emanavam dos três ali presentes, percorrendo tudo sem esbarrar em nada.

O velho Futuro ainda segurava sua cabeça com aquelas mãos podres e fortes. Ao ouvir a indagação de seu eu jovem riu um riso fétido de escárnio em decomposição.

- Fiz nosso filho. – disse entre uma risada e outra. – Fiz o que deveria ter feito há muito. – sua boca ria, seus olhos não.

Presente, parado e agora também atordoado, observava e interagia com aquela cena. Seu corpo pulsava na mesma frequência dos outros dois. Tinha medo do velho e desprezava o jovem, este sendo suas memórias, aquele sendo o desconhecido. Um calafrio assaltou-lhe quando percebeu que a intensidade e a frequência das ondas aumentava.

- F-filho?! Nosso? Como? Me larga, velho! Some daqui! – O jovem patético tentava se desvencilhar das fortes mãos de morte, em vão.

- Nosso, meu, seu, dele... na verdade pouco ou nada importa. Fiz o filho do Tempo. – Disse o velho. – Agora vai, pode ir. - Largou a cabeça de Passado.

O jovem saiu correndo em direção aos pilares, única casa que conheceu, e se aninhou entre dois deles. De onde estava pôde ver o Futuro se dirigir ao outro Tempo e, após lhe tirar da apatia, apontar-lhe algo. Apontar-lhe o chão. Tremia com medo dos seus dois futuros e com o sua mudança brusca de presente. De repente notou o silêncio. Não haviam mais vozes em sua cabeça. Um alívio angustiado o tomou, mas foi cortado pela percepção de que havia mais alguém ali com eles.

Bem onde o velho havia apontado alguém estava de pé.

Oblívio.

Futuro andou em direção a ele e lhe beijou as mãos, os olhos em prantos. Murmurou:

- Acabe com tudo, por favor. É chegada a hora.

Oblívio o pôs de pé e enxugou suas lágrimas.

- Paciência, velho. Só mais um pouco.

O velho se afastou, meneando a cabeça afirmativamente. Em poucos segundos havia desaparecido mais uma vez e levado consigo os outros Tempos.

- Só mais um pouco.

Virou-se para os pilares e cumpriu seu papel.

domingo, 15 de abril de 2012

Crônicas de uma Realidade: Oblívio #1


Os pilares jaziam em parte estraçalhados no chão em parte em ruínas no centro da clareira. A era do não-Tempo havia chegado há muito e, mesmo quando o velho ainda estava presente sua força não era mais sentida.

A esfera, antes azulada, límpida, agora era uma massa de rocha, poeira e concreto. Cinza e amarela, um deserto da não existência. O resultado de uma insistência.

Realidade, Ficção, Utopia, Distopia, Verdade, Mentira, Vida e Morte choravam a queda do pilares. Esperavam pelo Fim, que não mais viria junto ao Início, mas sozinho em sua derradeira aparição naquele plano sem motivos para continuar existindo. E sua espera foi-lhes recompensada. Fim ali fez-se presente, integro em sua ausência de forma, tranquilo com a destruição inevitável.

Estendeu sua energia sobre os outros e preparou-se para finalizar toda existência, mas algo o conteve. Uma força nova naquele mundo de velhos, uma nova criação, uma existência mais forte e mais presente que o próprio Tempo, uma criatura com ares de criador, um destruidor movido por desígnios superiores.

Filho de uma brisa, Oblívio ali estava. Os rostos que a ele olhavam mostravam-se vazios de medo, desejosos do fim. Eram deuses sem poder.

- Reis e rainhas de uma esfera morta, vocês nada são. Vocês para o nada irão; o fim esperado por vocês pode ser nobre, porém inútil. Queixam-se do egoísmo do Tempo, mas agem da mesma maneira. Ignoram, por acaso, a existência dos outros planos? Ignoram o passado, em todas as suas variáveis? Ignoram as memórias, os pilares?! – Aproximou-se do Fim e tocou-o – Você, que através da destruição renova o que morreu, compreende qual a minha tarefa. – Virou-se para os outros – Vocês, que vivem egoístas existências duplas, não entenderão e provavelmente me amaldiçoarão. – Virou-se para as ruínas dos pilares – Mas o que deve ser feito será feito.

Os pilares inflamaram-se com uma luz ígnea e desfizeram-se em fuligem como se fossem feitos de carvão, deixando uma enorme cratera onde por eras estiveram os sustentáculos da esfera.

E num piscar de olhos a floresta, a clareira, a esfera e tudo o mais foi sugado para o centro daquele buraco.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Crônicas de uma Realidade: Dois Velhos Conhecidos

O sol pintava os pilares com tons alaranjados do crepúsculo. Uma brisa fresca e agradável passeava pelo bosque.

O Tempo observava com uma paciência infinita o sol se movimentando no firmamento. Haviam alguns meses que não conseguia dormir, que não conseguia ter um minuto sequer de descanso. Desde que aquelas vozes desconhecidas começaram a habitar sua cabeça sua vida havia mudado.

No início havia somente o silêncio e a contemplação, a certeza da existência plena e, de alguma forma, supunha, soberana. Não conseguia se lembrar de nada antes disso, mas sabia que existira desde sempre e existiria para sempre.

Até que, de maneira inesperada e violenta, uma torrente de vozes, pequenas formigas, invadiu seus pensamentos, suas ideias, sua vida, levando-o quase à loucura. Milhares, não, milhões de pequenas vozes indistintas que pareciam lhe perguntar: “quem é você? De onde vem? Para onde nos leva?”.

Ainda não conseguia descansar, não conseguia dormir. O peso da dúvida das pequenas vozes o mantinha preso ao chão, inerte na sua posição de contemplação infinita.

- Ora, pois que vemos um pequeno projeto de deus! Já tão cheio de pretensões, de conjecturas! Tão igualmente deslocado, desconhecido! – disse uma voz de velho atrás dele.

Com o susto, o pequeno Tempo, o Passado, deu um salto amedrontado. Como alguém ousa falar assim com ele? Haveria de exigir o devido respeito daquele desconhecido!

Mas não era um, eram dois. Suas sombras se alongavam, se encontravam e se estendiam até os pés do Passado. Seu olhar de terror era claro, se reconhecia naquelas duas figuras ali presentes. O Presente sentiu de repente uma estranha coceira dentro do crânio acompanhada de uma fala: “Quem são vocês? O que querem? Como chegaram aqui? Me deixem sozinho!”

- Quem são vocês? O que querem? Como chegaram aqui? – indagou o pequeno Passado. Deu dois passos acuados para trás - Me deixem sozinho!

Presente e Futuro, ao ver aquela cena patética, gargalharam. O primeiro como um tio fanfarrão, o segundo como um moribundo piadista. Não podiam deixar de rir ante aquela caricatura desengonçada, necessitada de autoafirmação.

- Quem são voc-

- Shh rapaz! – disse o velho.

- Olhe para nós e responda: o que somos? – disse o adulto.

Ambos já sabiam que, a essa altura, ele já os havia identificado, mas sabiam também, ou melhor, lembravam, que ele negaria seu conhecimento, que tentaria, de alguma forma expulsá-los de lá, de seu presente, do passado deles.

- Não os conheço, não os reconheço. – virou-se – Vão embora!

Futuro andou em direção àquela figura jovem e insegura, atormentada por milhões de vozes em sua cabeça. Passado, de costas para suas faces mais velhas, só percebeu a aproximação do Futuro quando este já o agarrava pela cabeça com suas mãos decadentes, mas fortes.

- Olhe! – e, de maneira inesperada, o novo cedeu ao velho e então aconteceu.

O encontro dos três Tempos, o chamado do oblívio.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Crônicas de uma Realidade: Na Esfera

Ele corria. Sujo, ensanguentado, a ferida recém-cicatrizada em suas costas latejando, esfomeado, sem esperança. E ele corria.

As crianças o seguiam num misto de terror e fascinação, sem hesitar, sem olhar pra trás. Se tudo o que encontrariam seriam as mesmas certezas das cinzas, por que desviar o olhar do perigoso e incerto caminho adiante?

Tudo queimava, o ar feria os pulmões. Como tudo se deteriorou tão depressa?

Não havia mais cidades, não havia mais Estado, não havia mais civilização, mas ainda assim a guerra continuava. Era a incrível batalha para decidir quem morreria por ultimo.

Se ele não corresse com certeza não seria seu pequeno grupo. Tinha que achar algum abrigo em meio àquele terreno devastado e estéril. Fugiam há dias e a comida era mínima. Na primeira semana duas crianças morreram de cansaço e fome.

Foi surreal. Tudo é surreal.

Olhar para o passado e ver tudo se repetindo não exatamente da mesma maneira, mas com características bastante semelhantes. Foi como ler um livro e no dia seguinte perceber que aquilo não era apenas uma história, mas a realidade, mais objetiva do que jamais fora, palpável e palatável a qualquer um.

Um corvo bicando a carne podre de um imenso e global cadáver.

A noite se fundia com o dia, as chamas sempre ardendo, o céu sempre escuro, uma pintura de fumaça. De acordo com seu relógio seriam 4:30, mas da tarde ou da madrugada?

Andavam e andavam e andavam. Sob seus pés as cinzas, sobre suas cabeças a fumaça, ao seu redor as chamas, ultimo suspiro de um mundo que já fora criança. Suor, sangue e saliva se misturavam numa miscelânea de fluidos corporais.

Agora já não mais se nascia, apenas se morria.

Ainda podiam ser ouvidas bombas sendo detonadas aqui e ali. Continuação de algo que já perdeu todo o sentido há muito tempo.

Andavam, andavam e andavam, mas tudo o que encontravam era cinzas, fogo e fumaça.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Crônicas de uma Realidade: Utopia e Distopia

Chovia já há algum tempo. Os relâmpagos cortavam o firmamento e circundavam a esfera azul lá encima.

Havia na atmosfera algo de apocalíptico e sórdido, como se as regras estivessem sido apagadas e esquecidas, levando-as a uma não existência, destruindo e propiciando uma recriação. Eventos demasiadamente estranhos antecederam esse início de oblívio: uma explosão de luz envolveu os pilares, a esfera pintou-se subitamente de rosas escarlate e as nuvens começaram a cair.

Agora tudo era permitido.

Utopia corria. A chuva batendo pesadamente em seu rosto, suas roupas encharcadas. Quem primeiro chegasse aos pilares seria o mestre da esfera, seria indestrutível e absoluto.

Já era hora de estabelecer sua vontade. Todos aqueles seres inferiores que habitavam a enorme bola azul lá encima aprenderiam a viver em paz constante, em comunidade, em cooperação. Aprenderiam que não mais se deve competir, que deve-se contentar com o que se tem, que é inútil e ineficaz produzir tanto para depois destruir tudo. Ergueriam templos de harmonia, seriam todos, enfim, irmãos.

Viveriam todos sob suas leis e regras.

Por decreto seu estariam abolidos o mérito e a lei de causa e efeito, duas antagonistas no processo de homogeneização dos minúsculos seres lá encima. Decerto seus dois principais obstáculos impostos pela Realidade.

Mas agora que tudo havia mudado...

Por isso corria como se não houvesse amanhã. Seria ela a chegar primeiro nos pilares e a conquistar a esfera. Seria ela a única dona de tudo.

Desviava de árvores, pulava arbustos e saltava buracos e pequenas depressões, até que algo a derrubou.

Um vento frio de chuva fez-se sentir. Havia alguém ali, alguma entidade então completamente desconhecida e poderosa o suficiente para derrubá-la em sua corrida. Por instantes a única coisa presente foi a claridade escura das nuvens carregadas.

Então ela se revelou.

Nua e esquálida, carregando na face a morte desossada, a mulher a olhava de cima de um galho de árvore. Tinha na mão esquerda um punhal.

Utopia imediatamente sentou-se e olhou para aquela desconhecida que ousara interromper seu progresso. Entre os dentes cerrados rosnou um “quem é você?!”. A estranha, entretanto, limitou-se a descer da árvore e colocar-se diante de si. Olhada de perto sua figura era ainda mais mórbida: além da magreza doentia agora podia-se também observar as feridas abertas, algumas gangrenadas e infestadas de vermes, por todo o seu corpo. Sua boca era um sem número de aftas e abscessos. Seu cheiro era asqueroso.

- Quem é você? O que quer?! – rosnou mais uma vez Utopia.

A criatura deu um passo à frente. Ergueu o punhal e com um sorriso grotesco cortou uma fatia de sua própria perna. Sangue podre jorrou da nova ferida. Com as mãos em concha segurou parte do fluido e andou em direção à um rosto assustado marcado pela repugnância. Um passo, dois passos, três, quatro. Agachou-se, o sangue negro e fétido retido em suas mãos gangrenosas. Seus olhos se encontraram com os de Utopia, e então sorriu. Seus dentes de uma alvura ofuscante, sua gengiva de um vermelho vivo.

Utopia demorou para perceber o que acontecia, estava tão mesmerizada com o sorriso daquele ser, o sorriso mais lindo que já havia visto, que não percebeu que bebida daquele sangue venenoso e morto. Afundou-se tanto naquele sorriso que perdeu a noção do ser, do estar, do querer. Esqueceu quem era, quem foi, quem seria. Afundou-se tanto naquele sorriso que despertou nas trevas.

Dali há algum tempo aqueles que olhassem para aquele trecho da floresta viriam um vulto esguio arrastando algo que se assemelhava a alguém por entre as raízes, na direção dos pilares.