quinta-feira, 23 de junho de 2011

Crônicas de um Lugar Comum #3

Fim da palestra. Fim do discurso.
O aplaudiam de pé e os ecos das palmas enchiam seu espírito de certeza e confiança nessa nova geração. Agora conseguiriam mudar o país, acabar com a corrupção e acabar de vez com esse monopólio capitalista cruel e imperativo!
- Che está vivo! – gritou de punho erguido.
- Sempre vivo em nossos corações! – respondeu a platéia também de punhos erguidos.
É, a nação podia SIM ser salva desses tiranos capitalistas!
Como queria que seu filho estivesse ali, mas ele infelizmente havia sido cooptado pelas garras malignas do Tio Sam... mas enfim, não era hora de pensar nisso. Agora era o momento de sentir a glória das futuras conquistas.

***

- “Che está vivo”, pff, que piada... que piada SEM GRAÇA! – disse ele batendo com a mão na perna – Meu pai vive dizendo isso, acreditem. Ele queria que eu fosse um cordeirinho como ele e seu rebanho de maconheiros subversivos. Vocês acreditam que o primeiro livro que ele me deu pra ler foi O Manifesto Comunista? – Tragou profundamente o seu cigarro – É meus caros... é hora de agir contra isso. É hora de dar um basta nessa utopia caduca e carcomida. Vamos à luta! Sieg Heil! – fez a saudação honorária a seu mentor político.
- Sieg Heil, mein Führer! – responderam em uníssono.
Dentro de pouco uma fila de cabeças raspadas marchava em direção ao galpão isolado onde o grupo de socialistas se encontrava.

***

Ela corria desesperada de ambulância em ambulância querendo informações, querendo saber se seu marido e filho estavam bem. Por todo lado jovens ensangüentados, cabeças quebradas. Era uma cena de guerra.
Eles não estavam em lugar algum, só restava olhar no galpão.
- Que Deus me proteja. – orou baixo.
Entrando no galpão viu mais da cena de guerra lá fora. Rapazes desacordados ou semiconscientes sangrando e jogados ao chão. Num canto havia um grupo de policiais e paramédicos reunidos em volta de dois jovens. Chegou perto para ver se algum deles era seu filho, mas se deteve ao ouvir um policial falar “estão mortos, se esfaquearam”. Conseguiria ver o corpo frio da criatura a quem ela dera a vida? Não sabia, mas precisava saber.
Respirou fundo, esvaziou a cabeça de pensamentos e olhou.
Alívio. Não era sua cria.
De repente um grito forte veio de trás do galpão. Ela se assustou, conhecia essa voz. Correu para uma portinhola no outro lado da estrutura enferrujada e a cena que viu deixou-a paralisada por um sem número de minutos.
Seu filho estava de pé, mãos sujas de sangue, enquanto seu marido jazia ajoelhado, rosto coberto de hematomas. Agarrava o ventre com força e gemia. O jovem virou-se e viu a mãe. Abriu um sorriso e disse com alegria:
- Vê? Esse sonho dele é tão frágil... ainda bem que você não é assim mãe, ainda bem... eu gosto da senhora... mas ele? – olhou por sob os ombros pro pai ajoelhado – Ele merece a morte, assim como os seguidores dessa doutrina vermelha. – e gargalhou.
Sua perplexidade tornou-se raiva, sua raiva tornou-se pena. Chamou os policiais e mostrou-lhes a cena. Seu filho ainda ria insano e descontrolado, sem vínculo com a realidade imediata.
Os policiais sacaram as armas do coldre e lhe deram voz de prisão, mas ele tirou um revolver velho de dentro da jaqueta.
Seguiu-se uma sucessão de estampidos.
O jovem estava no chão. Sua vida escorria dos inúmeros furos em seu peito. Seu rosto congelou numa risada.
Ela chorou e correu ao encontro do marido e lhe beijou a face ferida.
Ele mostrou-lhe a faca cravada em sem abdômen.
Não parecia uma cena de guerra.
Era uma guerra.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Crônicas de um Lugar Comum #2

“Apartamento 2/4 e 3/4 num bairro fechado, espaço gourmet, academia, salão de jogos, garage band, parque aquático... tudo isso dentro de uma reserva de mata atlântica no novo centro da cidade, a cinco minutos da praia, ao lado do principal shopping da cidade.
Utopia Garden, você merece esse sonho!
Estande decorado no local.”

- Olha Beto, olha! Vamos morar lá, é um ótimo lugar para as crianças, sem violência, sem mendigos, só gente da nossa classe! Beto, você está me ouvindo? Sim, como ia dizendo olha, a uma das melhores escolas da cidade fica apenas a 100m de lá! Beto, com os nossos salários unidos e um bom financiamento nós podemos sair desse lugarzinho horrível aqui no centro. Lugar degradado! Nos tempos de nossos pais isso aqui era bairro de luxo, acredita? Mamãe teve que vender metade das jóias dela pra comprar esse apartamento... Mas enfim! Beto, você não está me ouvindo, não é? Hein? Beto?
- Hã? Sim, estou ouvindo. Clara, meu amor, depois discutimos isso, sim? Vamos ver isso com calma, afinal você sabe como são esses novos apartamentos, verdadeiras celas tecnológicas. Nosso apartamento aqui é muito bom, dos antigos! Muito grande e espa...
- Mas Beto, você não entende! Ontem mesmo eu quase esbarrei com um mendigo na calçada aí em frente! Foi horrível! Ele fedia e lhe faltavam os dentes da frente! Você quer que seus filhos cresçam vendo esse tipo de coisa? Quer? E a padaria do Seu Manoel? Só ano passado foi assaltada umas cinco vezes!
- Três vezes, Clara. Três vezes.
- Você não quer mesmo sair daqui não é? Você nunca faz nada que eu te peço, nunca! Você quer me arrastar pra uma vida medíocre nesse centro velho!
- (Ah meu Deus, começou...) Deixe de besteira! Você sabe que esse papinho de “novo centro” é só embromação. Acaso TODOS os serviços vão migrar pra lá também? Você pensa que...
- Roberto, olhe como você fala comigo! Eu não sou nenhuma criancinha de três anos não! Eu sei o que vejo e ouço! Todas as minhas amigas dizem que...
- Ahh... as amigas, claro, claro, elas sabem tudo não é? Ahh, esqueci, elas trabalham em que mesmo?
- Olhe aqui, eu já te falei pra não falar nada das minhas amigas! Você se lembra daquela vez que...
E assim mais uma família feliz constrói seu futuro na civilização.

***

Uma semana depois, Roberto está na casa do irmão e Clara voltou para a casa da mãe. Os filhos? Vivendo uma vidinha de plástico na casa da avó materna, em outro bairro fechado, onde as garras da realidade ainda não penetram. Ruim pra eles, quando saírem desse casulo cor de rosa vão ser piores crianças crescidas que sua mãe.

sábado, 18 de junho de 2011

Crônicas de um Lugar Comum #1

Caros leitores, resolvi começar a escrever uma série de crônicas que, quando completas, formarão uma teia de impressões e percepções da nossa realidade. Uns retratos tristes, outros cegamente felizes, outros fanáticos... nada muito diferente do nosso mundo.
Boa leitura e boas reflexões.

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A limusine saía com dificuldade do hotel.
Centenas (que mais pareciam milhares) de fãs comprimiam o automóvel, gritando e chorando histericamente, se esmagando para apenas terem o vislumbre do rosto de seu ídolo. Ele, na segurança de seu carro, se permitia somente olhar para os miseráveis se empurrando, uivando e vocalizando como animais lá fora.
- Rogério, - o motorista olhou pelo retrovisor – tente acelerar mais um pouco. – Olhou com desdém a multidão do outro lado do vidro fumê – Não quero perder meu vôo.
Imediatamente o ronco do motor se fez ouvir e quase simultaneamente os fãs recuaram alguns poucos passos. Tinham no rosto uma expressão de surpresa e desilusão.
“Por que ele tá fazendo isso?” quase todos se perguntaram, mas ficaram sem resposta. Gritos e uivos cessavam enquanto os faróis traseiros sumiam ao dobrar uma esquina.
Dentro do carro, ouvindo uma música de algum bom artista do passado, ele tirava do bolso um pequeno frasco contendo um pó branco.

***

Algumas horas depois, uma camareira encontrou, enquanto arrumava o quarto, um pequeno gravador enrolado em muitas camadas de papel higiênico amassado e sujo de sangue no lixo. Assustada, levou o objeto para a diretora do hotel, que, ao saber de onde e em que circunstâncias o gravador havia sido encontrado, ligou para sua filha, jornalista apagada de uma das tantas revistas sobre celebridades existentes. Juntas elas ouviram o que o artista havia gravado.

“Meu nome é Fernando Castro Fontes, mas me conhecem apenas pela máscara de NãDùh, nome que assumi quando mergulhei nessa proposta de enriquecimento e reconhecimento rápidos. Bem...” nesse momento um chiado muito forte tomava conta do áudio, e quando passou tudo que se podia escutar era um longo lamento choroso, sem palavras. Após alguns minutos a fita continuava “... e eu nunca poderia imaginar, acreditem, NUNCA, o quão... solitária, o quão difícil seria essa vida. Não tenho em quem confiar. Minha família e meus amigos estão sempre cheios de interesse, seu tom de voz exala malícia e cobiça...” um longo silêncio se segue, sendo interrompido por um barulho de metal atritando contra alguma superfície sólida e um sobressalto de dor. “Meus fãs? Aquelas antas sob duas pernas não sabem o tempo que estão perdendo. Mas, sabe, até que eles são felizes... eu os faço felizes, isso pelo menos diminui a minha dor... NÃO! Quem eu estou tentando enganar? Quem? QUEM?!” gritos explodem “Eu sou a criatura mais infeliz deste planeta. Não quero continuar fazendo isso, mas não quero perder tudo o que conseguiram para mim, não quero perder meu nome, meu prestígio..! Mas sei que vou perdê-lo, mais cedo ou mais tarde. Nada mais substituível que um ídolo de carne e osso... Sou um covarde. Sou uma porcaria. Meus anti-fãs é que estão certos, e pode apostar: se eu não fosse essa criatura deplorável eu também estaria em suas fileiras ajudando a xingar e a denegrir imbecis como eu. Mas infelizmente as ações deles são altamente previsíveis, são eles que muito mais ajudam a divulgar a mediocridade. Ah... não tem jeito, não tem jeito, não tem jeito, nãotemjeitonãotemjeitonãotemjeitonãotemjeito...” e assim seguem-se dois minutos de fita, até que um barulho distante de telefone interrompe a sucessão desregrada de palavras e lágrimas “merda, merda, merda! ME DEIXA EM PAZ, PORRA! A covardia chama e eu, como um de seus mais fiéis servos, atenderei. Adeus.”

Ambas estavam pasmas e radiantes. Essa seria a notícia do ano!
Pelo menos até o próximo mês.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Esse Velho Neo-Paganismo

Chamado catolicismo.

É sabido que muitas (senão todas) as datas festivas do cristianismo, como o natal, a páscoa e o carnaval, foram incorporadas de diversas religiões pré-existentes, com uma influência maior do paganismo romano, coisa que muitos católicos escondem ou mesmo desconhecem, mas que, por meio de estudos e novas traduções de textos milenares, estão vindo à luz.

Sempre achei engraçada a postura da Igreja.
"Não culutuarás outro Deus além de Mim" e aínda assim é controlada por um Ídolo de carne e osso: o Papa.

E a infinidade de santos existentes, cada dia sendo reservado pra um, e suas respectivas infinidades de templos erguidos em honra? Isso não seria análogo em todos os sentidos à infinidade de divindades romanas e seus respectivos templos?

Contra-argumento: "Mas os santos não sçao Deuses, são pessoas santas, que viveram na graça da Santa Igreja e que mesmo após a morte continuam nos ajudando! Sem falar que Deus é quem os comanda e os guia."

E daí eu digo: E Júpiter não seria o Rei dos Deuses? Não teria um imperativo sobre todos os outros?

Muda-se o nome e deforma-se o rosto, mas a essência continua a mesma.

Ateu? Não, obrigado.

Protestante? Não, obrigado.

Apenas não gosto dessa hipocrisia mentirosa, descarada e subjugadora.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

A Menina das Listas

- Arrumar o quarto;
- Pintar as unhas;
- Ajeitar os livros;
- Ler o livro rosa; não, não, o azul; não, não, não, o vermelho! Isso, o vermelho!
- Assistir....

"Ahh, esquece!"

Mais uma vez ela começava uma lista. Mais uma vez não terminava.
Listas, listas, listas. Precisava delas pra se situar, mas oh, como eram simplistas, reducionistas, diretas!
Mas precisava se organizar!

Voltando ao trabalho:
- Arrumar o quarto;
- Pintar as unhas;
- Ajeitar os livros;
- Ler o livro rosa, DEPOIS o azul e SÓ ENTÃO o vermelho;
- Assistir o filme B, o filme D, o filme C, o filme...

"Não, não não!"

Sentou-se inconformada no sofá. Não conseguia terminar as listas. Precisava se organizar para só então organizar algo mais.
E ficou refletindo por um longo tempo em como se organizar, em como se harmonizar.
Até que, num estalo espontâneo, quando já estava quase desistindo de qualquer tipo de organização, descobriu o que e como fazer.

Armou-se com uma caneta e um papel, sentou-se a mesa e escreveu sua mais precisa lista. Finalmente!
Tinha certeza que agora tudo entraria nos eixos e ficaria tudo mais facil, para ela e para os outros.

Essa sua lista, a única que tinha certeza que cumpriria por completo, continha apenas um item, mas que resumia tudo o que tinha que fazer.

Escrita no papel estava apenas uma frase:
- Deixar o caos tomar o seu próprio rumo de organização e segui-lo. Fazer o que der vontade de fazer, na ordem que julgar ser melhor, da forma que julgar mais conveniente. Não seguir roteiros.

Satisfeita, levantou da cadeira e foi seguir a sua lei.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Nas palavras do Profeta:

"(...) Quando me cansei de acompanhar as eras dissolutas e me fartei de observar as procissões de povos entorpecidos, caminhei sozinho até o Vale da Sombra da Vida, onde o passado, cheio de culpa, tenta se esconder, e a alma do futuro se dobra e repousa por um tempo excessivo. Lá, à beira do Rio de Sangue e Lágrimas, que se arrasta como uma víbora venenosa e se contorce como os sonhos de um criminoso, ouvi o sussurro amedrontado dos fantasmas dos escravos e fiquei olhando para o nada.

Quando deu meia-noite e os espíritos emergiram dos esconderijos, vi um espectro cadavérico e moribundo caído de joelhos, olhando para a Lua. Aproximei-me dele e perguntei: "Qual o seu nome?".

"Meu nome é Liberdade", respondeu aquela sombra fantasmagórica de um cadáver.
Indaguei: "Onde estão seus filhos?".

E a Liberdade, chorosae fraca, soluçou: "Um morreu crucificado, o outro morreu louco, e o terceiro ainda não nasceu".

Ela se foi, mancando, sem parar de falar, mas a névoa em meus olhos e o choro em meu coração me impediram de ver ou de ouvir."

- Gibran Khalil Gibran, Temporais (também conhecido por Segredos do Coração), trecho do conto Escravidão.