sexta-feira, 22 de março de 2013

Cinza #2: Ideologia


Sentado na penumbra de seu quarto, observava um ou outro carro passando pelo viaduto vazio que se erguia diante de sua janela. A insônia sempre fora sua companheira de vida, desde a infância. A insônia sempre lhe ajudara a ver o mundo como realmente era, sem as pinturas dos dias ensolarados. A insônia sempre o fez ser superior à maioria.

Estava tudo pronto. Ele pacientemente esperava o romper do dia para, junto com seus camaradas, executar mais um plano, dar mais um passo rumo à liberação.

Democracia? Não... democracia não era uma opção para um mundo como esse. Nisso os dirigentes haviam acertado, apenas não na natureza do regime.

Ditadura... sim, ditadura! Poder para a base da pirâmide!

Mas ao mesmo tempo sabiam que a massa não tinha competência para se governar. A massa é massa. A massa é gado, peões de manobra, e eles saberiam se utilizar disso. Precisavam de força, precisavam de vozes, precisavam de músculos, não de olhos, ouvidos ou intelectos.

Os seus três camaradas dormiam em colchões espalhados ao acaso pelo assoalho frio daquele apertado apartamento alugado. No banheiro, as armas estavam empilhadas num canto, dentro de uma sacola. Armas velhas e enferrujadas: dois revólveres, uma pistola dos anos 40 e uma rústica submetralhadora, que roubaram do baú de recordações do avô de um de seus colegas.

Ele apenas observava. Se tudo desse certo sairiam ilesos, com mais armas e dinheiro, se não... morte era o destino mais adequado. Melhor que apodrecer nos porões-masmorra...

Um de seus comparsas acordou e, ainda sonolento, sugeriu que dormisse um pouco, que precisavam dele no seu melhor estado para a investida do dia seguinte. Brusca e secamente mandou-o calar a boca e voltar a dormir, sem sucesso. Da boca de seu camarada saíam perguntas imbecis e incômodas, questionamentos sobre seus motivos, suas filosofias, suas crenças, sua determinação... levantou-se, foi até ele, respiração pesada, punhos cerrados, uma aguda irritação em seu peito por causa da meditação interrompida, um rosto sereno, assustador. Parou diante do inoportuno questionador e disse, num tom calmo, pontuando bem as palavras: “Por meus objetivos, eu mataria minha família inteira”.

Depois disso nenhuma palavra a mais foi proferida.


***


Tarde demais, tudo deu errado.

Deitado de bruços no concreto quente da calçada, com metade do rosto no sangue de seus companheiros e balas em sua perna direita e ombro esquerdo, seu futuro parecia traçado: a morte. Era preferível morrer, pelo bem da causa. Todos os outros haviam morrido, só ele continuava vivo. Isso era injusto, mas também... também era uma oportunidade! Ele não queria morrer tão jovem, quem poderia saber o que o futuro lhe reservaria?

Em frações de segundos tudo poderia ter acabado ali. Bastava um movimento rápido de seu braço direito e “bam”, morto por movimentos bruscos. Mas ele optou por viver. Melhor seria se fosse o único sobrevivente de um ato heroico, melhor ser ícone, líder!

Mãos fortes agarraram-no pelos braços e seu ombro gritou a dor da carne, sangue ainda saía dos locais atingidos. Estava tonto, provavelmente pela perda de sangue, mas estava, apesar de tudo, satisfeito. “Matei meus camaradas, mas meu nome irá permanecer entre os vivos!”.

Com um baque seco, quando foi jogado no fundo da viatura, tudo escureceu, firmou os pés na terra de Hipnos.


terça-feira, 5 de março de 2013

Cinza #1: Dever


Era bom estar em casa.

Era bom sair, uma vez por mês que fosse, daquele lugar e estar com sua esposa e filhos.

Casa.

Cheiros, gostos, músicas, sorrisos, sentimentos...

Era muito bom estar em casa.

Acordado, ainda deitado na cama, ouvia os barulhos da cidade. Carros passando pelas ruas de paralelepípedo, vendedores de jornal gritando as ultimas manchetes, vozes indistintas dos pedestres...

Dentro de casa, ao seu lado, sua mulher ressonava num sono tranquilo, o sono dos justos. Ele, por outro lado, não conseguiu dormir direito e acreditava que não conseguiria mais ter uma boa noite de sono para o resto de sua vida.

Seu trabalho o consumia.

“É tudo para o bem comum. É com a visão no futuro que tenho que fazer tudo aquilo que me é ordenado, sem hesitar, sem questionar” dizia para si mesmo todos os dias. Cumpria com suas obrigações como esperado, até demonstrando uma certa alegria nisso, mas sentia-se mal toda vez. Seu estômago embrulhava sempre que voltava àquele pedaço de terra.

De repente se percebeu fitado por dois profundos olhos azuis. Dois olhos azuis que amava. Pelo olhar que lhe dava, ela sabia no que estivera pensando.

Suas mãos passearam por seu abdômen e chegaram ao seu rosto, sua boca aproximou-se do seu ouvido e sussurrou um “não se preocupe” carinhoso e sonolento. Beijaram-se.

Era realmente muito bom estar em casa.

***

Estava vestido com o uniforme, sozinho no escuro.

De pé no barro batido, ouvia rugidos, vozes e sussurros a sua volta. De repente uma luz. Viu-se cercado das pessoas que gostava: sua mulher, seus dois filhos, seus amigos do antigo trabalho.

Não mais. Rostos vazios e esfomeados o encaravam, xingavam e pediam piedade. Em suas mãos um chicote, mas não um chicote, a coluna vertebral de alguém. De sua mulher.

Gritou, o horror em sua alma o consumindo.

Acordou.

Era fim de madrugada, mas se recusava a voltar a dormir. Em vez disso, seguiu para a sala e relembrou, sentado em sua poltrona, essa curta semana que passara em casa, que passara em paz.

Pegou seu cachimbo na estante, encheu-o com tabaco, acendeu-o e pôs-se a tragar displicentemente, a fumaça levando embora cada traço de humanidade que havia reposto nesse curto tempo. Teria de ser impassível, de ferro, bronze e prata.

Os primeiros raios do dia começavam a se insinuar pelas janelas. Era o dia de voltar pro seu trabalho. Era o dia de voltar pro seu propósito. Era o dia de voltar ao seu sacrifício.

Sem mais sorrisos, sem mais alegria, sem mais amor. Seu sobretudo o zombava de dentro do guarda-roupas. Cinza ele teria que ser para passar por mais um mês.

Mais tarde, enquanto voltava para o isolado pedaço de terra que havia sido uma fazenda, apenas um pensamento se repetia em sua cabeça: “queria poder ter escrito um livro, plantado uma árvore e não ter feito parte disso”.