terça-feira, 28 de agosto de 2012

Crônicas do Esquecimento #1: Linha de Montagem


Ao soar da sirene as portas da montadora se abriram para a troca de turnos. O sol começava a se erguer por sobre a familiar camada de poluição que encobria maternalmente aquela cidade. Dos ônibus desciam os trabalhadores que, como nos últimos anos, vestiriam seus uniformes, operariam as prensas, soldas e moldes, teriam um breve horário de almoço, voltariam aos seus postos, suariam, teriam cãibras, dores nos olhos e costas, tomariam um rápido banho gelado, vestir-se-iam de homens e iriam para suas casas na esperança de sexo, alimento, descanso e dinheiro no fim do mês. Tudo perfeitamente dentro dos conformes.
Assim José vivia. Assim tudo funcionava perfeitamente.

A manhã transcorreu na mais perfeita monotonia: soldas, prensas, moldes e suor. O almoço teve o mesmo gosto cinza de todos os outros almoços, com as mesmas conversas e as mesmas pessoas. Corria tudo dentro dos conformes.

Até que no início da tarde, enquanto José e seus companheiros de sempre se preparavam para voltar pras posições, protelando ao máximo este evento inevitável, um silêncio súbito, seguido por uivos raivosos (ou seriam alegres?) tomou conta do galpão. Confuso, José ficou parado onde estava.

“As máquinas pararam!” ouviu alguém dizer em uma plataforma mais à esquerda. Não entendia. Como era possível todas as máquinas pararem ao mesmo tempo? Perguntou isso ao operário a sua direita. “Não é.” foi a simples resposta que recebeu. Estava confuso.

Pela primeira vez em muitos anos de trabalho, correu até o seu posto e tentou operar a solda. Nada. Pegou o kit de manutenção e olhou os mecanismos em busca de alguma falha. Nada. Via seus colegas fazendo o mesmo, também sem sucesso. “Talvez seja uma falha nos comandos a fábrica” disse entre os dentes, meio ansioso para que fosse verdade, mas desejando que fosse mentira. Odiava o trabalho que tinha, mas sem trabalho não havia dinheiro e dinheiro era necessário para acalmar as ânsias da mulher, par pagar a escola dos filhos e para relaxar no bar do Caçula no domingo... portanto tinha que trabalhar!

Entre o burburinho e os uivos esporádicos, os autofalantes da fábrica reproduziram a voz esganiçada do diretor: “Atenção todos os operários! Pedimos que se mantenham calmos e permaneçam em seus postos. Aparentemente estamos passando por dificuldades técnicas nos comandos centrais da fábrica, porém dentro de pouco tudo estará resolvido Agradecemos a cooperação de vocês”.

José sentou, esperou e, em pouco tempo, cochilou.

***

Daniel estava ficando louco. Havia três semanas que tentava, em vão, reprogramar e colocar todas as máquinas da fábrica em funcionamento. Os diretores faziam pressão, mas não havia nada que pudesse fazer, era como se as máquinas se recusassem a aceitar os comandos. Três dos sete técnicos de sua equipe já haviam pedido a recisão do contrato depois da notícia que algumas outras fábricas ao redor do mundo começaram a parar sem razão, explicação ou qualquer defeito aparente. “Se nem a NASA sabe o que está acontecendo você acha que nós, meros técnicos provincianos, vamos conseguir consertar algo?” disse um deles após anunciar sua decisão.

Os prejuízos eram enormes: por dia bilhões de dólares deixaram de circular em forma de mercadoria, em uma semana um terço dos trabalhadores fabris tiveram de ser demitidos e os outros tiveram o salário tremendamente reduzido. As balanças comerciais ao redor do mundo estavam descompensadas, ninguém sabia mais o que fazer.

“Sabe de uma?” pensou Daniel, “eles é que tem razão! Nunca vamos consertar isso.”. Levantou-se, deixando todo seu material na sala de controle da fábrica vazia. Na noite só os grilos faziam barulho. Foi até o seu carro e girou a chave na ignição: nada, nem o mais rouco dos sons de partida.

O carro se recusava a executar sua função. 

domingo, 12 de agosto de 2012

Crônicas do Esquecimento


O dia amanhecia como havia amanhecido trilhões de vezes. Alguns iam dormir, outros acordavam. Tudo dentro dos conformes.

Em inúmeras casas despertadores despertavam sonhadores, trabalhadores, estudantes. Cansados, sonolentos ou irritados eles se levantavam para mais um dia da honrada jornada mecânica que fazia o mundo girar. Tudo dentro dos conformes.

Em alguns quartos pessoas que há muito não dormiam percebiam o sol nascendo e filtrando a escuridão.  Em outros se dormia sem o conhecimento do sol que nascia. Tudo dentro dos conformes.

Alguns momentos mais tarde os cansados, sonolentos e irritados se dirigiam para os locais de todo dia para realizar suas tarefas de todo dia e voltarem para casa insatisfeitos, deslocados ou frustrados, como todo dia. Tudo dentro dos conformes.

As ruas começavam a pulsar com a vida honrada e correta, enquanto a vida obscura se recolhia ou camuflava entre os demais. Vários rostos, corpos e mentes numa massa única. Tudo dentro dos conformes.

Mas não por muito tempo.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Soneto da Controvérsia


Bastou a chuva para ter que sair
Bastou a trégua para a guerra surgir
Bastou a terra para o rio fluir
Bastou a calma para a raiva rugir

Faltou um beijo antes do sol se pôr
Faltou carinho, afago, sossego, amor
Faltou acordo, só ficou a dor
Faltou amante, na cama ficou o calor

“Drenou minha vida
com sua partida”
Frase batida

No início me refugiava
Depois angústia gritava
Agora uma pequena batalha se trava