sábado, 15 de setembro de 2012

Crônicas do Esquecimento #3: Lampião a Gás


- Beto, já consertou o lampião?

- Oi?

- Perguntei se já consertou o lampião.

- Ah sim. Não, ainda não.

“A noite e escura e cheia de horrores”, assim ele lembrava de ter lido em algum lugar. Mas lá as noites, mesmo as mais escuras, possuíam algum brilho, algum encanto, e os horrores eram sombras, monstros e mortos. No caos que se tornou a vida real as noites, mesmo as enluaradas, eram breus de desespero e os horrores eram os homens, os animais e a fome. Para afastar as trevas era necessário que se fizesse a luz, mas o lampião havia quebrado e restava apenas um toco quase morto de vela. Em breve estariam sós; ele, Bárbara e o bebê ainda sem nome em breve seriam beijados pela escuridão de uma noite nublada.

Para sua negativa não houve resposta falada, só um consentimento pessimista mudo. Fora o barulho feito enquanto tentava consertar o lampião o silêncio era absoluto. Até os grilos pareciam ter se calado frente à atmosfera tensa dos últimos meses. A sujeira de dias se acumulava em suas roupas, em seus utensílios e em seu corpo, mas já não ligava tanto. Enquanto tivessem água, comida e luz tudo estaria bem. Pelo menos não morreriam de desnutrição ou sede, como soube que vinha acontecendo em vários lugares.

- Sabe Beto, - ela quebrou o silêncio – às vezes acho que isso é só um pesadelo.

- Hum...

- Quer dizer... putz, todas as máquinas que trabalham com qualquer princípio inteligente...

- Automático ou de armazenamento de energia...

- Sim, que seja, enfim, todas elas pararam de funcionar! Isso é coisa de filme cara! Isso é coisa de filme Cult, sabe? Que aquela galerinha estranha curte...

- Curtia.

- Pare de me corrigir! Porra, tô aqui tentando quebrar esse silêncio desgraçado e você fica aí fazendo pouco caso, me corrigindo! Quer silêncio? Pois vá, saia sozinho, só deixe o lampião comigo!

- Bá, pare com isso.

- Ah, agora tá ruim, é?

- Você vai acordar o bebê.

- O beb- Ih, o bebê! Meu Deus, como pude esquecer do bebê?!

- Você o que?!

- Não, calma, ele tá aqui, só tinha me esquecido da existência dele.

- Você esqueceu de seu filho?! Não se esquece que um filho existe!

- Nosso filho. NOSSO filho, Beto. Você constantemente parece esquecer que teve uma função fundamental pra que ele existisse.

- Bá, você sabe que...

- Ah, não venha com essa de não saber se você é o pai! É claro que é você!

- Bá... não quero mais falar sobre isso.

- Não quer mais? Mas vai ter que ouvir! Eu estou cansada, Beto! Não aguento mais andar, andar, amamentar, andar, comer mal, andar, dormir debaixo de um teto qualquer, com medo, insegura, com um bebê...

Pensou em dizer algo como “então morra!”, mas se conteve.

- Bá... me desculpe. Vamos achar um lugar pra ficarmos em segurança.

- Esse lugar não existe, Beto. Não vamos nunca mais ficar em segurança, você sabe, você mesmo me disse isso! Deus... não sei porque continuamos vivendo!

- Bá, o bebê...

- Ele tá aqui, não acordou, fique tranquilo.

Ele olhou pra a vela, estava muito mais curta do que se lembrava, tinha que consertar logo o lampião ou caso contrário passariam toda a noite no escuro.

De repente teve uma sensação de deslocamento, como se nada fosse real, como se tudo fosse um sonho, e lembrou que não sabia como ajeitar aquele lampião. Iriam passar a noite no escuro.

- Bá...

- Shh! O bebê!

- Olha... eu acho que...

- Vai acordar o bebê! Fale baixo!

- ... vamos passar a noite no escuro.

- Acho que ele fez cocô... deixa eu olh– AHH!

- O que foi?!

- Beto, ele... ele... Beto, ele tá morto!

- O que?! Não é possível! Ele tava bem hoje de manhã! Deixa eu ver aqui, me dá ele!

Não apenas o bebê estava morto, mas estava se decompondo a olhos vistos, até ele, que era leigo, sabia que era algo de mais de uma semana.

- Bá, como... como não percebemos?

Ela, em lágrimas, não respondeu.

- Bá, me lembro que você o amamentou hoje! Bá, não... não entendo!

E numa rajada de vento, o que havia de chama se apagou.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Crônicas do Esquecimento #2: Ecos


- Rápido, a antena! Consertem a antena!

Gritava comandos como esse todos os dias agora, embora soubesse que pouco ou nada adiantava: as máquinas já não funcionavam de acordo com a vontade dos homens. De nada adianta consertar o que não está quebrado.

Há um mês as máquinas começaram a não executar suas funções. Há um mês a humanidade voltava gradativamente à Idade Média. Religiões começaram a anunciar o fim dos tempos (ou será que nunca pararam?), o êxodo urbano surpreendia cada vez mais, cidades industriais iam pouco a pouco se tornando cidades-fantasma. Também nunca se tinha visto índices de suicídio e homicídio tão altos na história da humanidade.

Caos, caos total e interminável. E ele ali, em relativa paz com o que sobrou de seu time de técnicos e engenheiros dentro daquele habitat hermético da NASA.

- A antena! Não podemos ficar sem contato com os astronautas!

Mas sabiam que a uma altura daquelas já deveriam estar mortos. A não ser que as máquinas não estivessem se recusando a trabalhar fora do planeta...

Essa mais recente expedição à lua foi um erro, em sua opinião. “É necessário reafirmar a América como líder mundial e, por que não, do sistema solar!” disse seu diretor na cerimônia de lançamento da espaçonave Icarus III. Onde estava ele agora? Deitado sobre sua mesa, com pequenos pedaços de seu cérebro e sangue espalhados pelo carpete azul de sua sala, iniciando o processo de decomposição.

- Vamos, a antena, merda!

Mas sabia que tudo o que fizesse seria inútil.


***


A comunicação com a Terra estava cortada há três dias, o sistema de reciclagem de oxigênio estava quase parando, não havia mais água potável, mas haviam chegado à lua novamente. 

“Não importa que tenhamos chegado aqui se todos amos morrer de fome, sede ou asfixia! Temos de tentar consertar nossos sistemas de sobrevivência!” insistia um de seus colegas. 

Mas nada havia para ser consertado.

Não tinham como sair dali, ela bem sabia.

Por isso ali estava, sozinha e com um dos poucos objetos eletrônicos (além dos trajes e luzes elétricas) que ainda funcionava. Desplugou o canal de áudio interno e conectou seu pequeno e antigo I-Pod.

Nesse momento uma sombra se fez perceber nas areias pálidas, ao seu lado. Era ele. Abraçaram-se longa e desajeitadamente, por causa dos trajes, mas, através do capacete dele, ela pôde ver o sorriso que tanto gostava encimado por aqueles olhos ora sérios, ora brincalhões, mas sempre sinceros.

Um não podia ouvir o outro, mas a música que tocava em seu traje falava por ambos e se comunicava em ecos intermináveis com a infinitude escura, fria e amedrontadora que os rodeava.