- Beto, já consertou o
lampião?
- Oi?
- Perguntei se já
consertou o lampião.
- Ah sim. Não, ainda
não.
“A noite e escura e
cheia de horrores”, assim ele lembrava de ter lido em algum lugar. Mas lá as
noites, mesmo as mais escuras, possuíam algum brilho, algum encanto, e os
horrores eram sombras, monstros e mortos. No caos que se tornou a vida real as
noites, mesmo as enluaradas, eram breus de desespero e os horrores eram os
homens, os animais e a fome. Para afastar as trevas era necessário que se
fizesse a luz, mas o lampião havia quebrado e restava apenas um toco quase
morto de vela. Em breve estariam sós; ele, Bárbara e o bebê ainda sem nome em
breve seriam beijados pela escuridão de uma noite nublada.
Para sua negativa não
houve resposta falada, só um consentimento pessimista mudo. Fora o barulho
feito enquanto tentava consertar o lampião o silêncio era absoluto. Até os
grilos pareciam ter se calado frente à atmosfera tensa dos últimos meses. A
sujeira de dias se acumulava em suas roupas, em seus utensílios e em seu corpo,
mas já não ligava tanto. Enquanto tivessem água, comida e luz tudo estaria bem.
Pelo menos não morreriam de desnutrição ou sede, como soube que vinha
acontecendo em vários lugares.
- Sabe Beto, - ela
quebrou o silêncio – às vezes acho que isso é só um pesadelo.
- Hum...
- Quer dizer... putz,
todas as máquinas que trabalham com qualquer princípio inteligente...
- Automático ou de armazenamento
de energia...
- Sim, que seja, enfim,
todas elas pararam de funcionar! Isso é coisa de filme cara! Isso é coisa de
filme Cult, sabe? Que aquela galerinha estranha curte...
- Curtia.
- Pare de me corrigir! Porra, tô aqui tentando quebrar esse silêncio desgraçado e você fica aí fazendo
pouco caso, me corrigindo! Quer silêncio? Pois vá, saia sozinho, só deixe o
lampião comigo!
- Bá, pare com isso.
- Ah, agora tá ruim, é?
- Você vai acordar o
bebê.
- O beb- Ih, o bebê!
Meu Deus, como pude esquecer do bebê?!
- Você o que?!
- Não, calma, ele tá
aqui, só tinha me esquecido da existência dele.
- Você esqueceu de seu
filho?! Não se esquece que um filho existe!
- Nosso filho. NOSSO
filho, Beto. Você constantemente parece esquecer que teve uma função
fundamental pra que ele existisse.
- Bá, você sabe que...
- Ah, não venha com
essa de não saber se você é o pai! É claro que é você!
- Bá... não quero mais
falar sobre isso.
- Não quer mais? Mas
vai ter que ouvir! Eu estou cansada, Beto! Não aguento mais andar, andar,
amamentar, andar, comer mal, andar, dormir debaixo de um teto qualquer, com
medo, insegura, com um bebê...
Pensou em dizer algo
como “então morra!”, mas se conteve.
- Bá... me desculpe.
Vamos achar um lugar pra ficarmos em segurança.
- Esse lugar não
existe, Beto. Não vamos nunca mais ficar em segurança, você sabe, você mesmo me
disse isso! Deus... não sei porque continuamos vivendo!
- Bá, o bebê...
- Ele tá aqui, não
acordou, fique tranquilo.
Ele olhou pra a vela,
estava muito mais curta do que se lembrava, tinha que consertar logo o lampião
ou caso contrário passariam toda a noite no escuro.
De repente teve uma
sensação de deslocamento, como se nada fosse real, como se tudo fosse um sonho,
e lembrou que não sabia como ajeitar aquele lampião. Iriam passar a noite no
escuro.
- Bá...
- Shh! O bebê!
- Olha... eu acho
que...
- Vai acordar o bebê!
Fale baixo!
- ... vamos passar a
noite no escuro.
- Acho que ele fez
cocô... deixa eu olh– AHH!
- O que foi?!
- Beto, ele... ele...
Beto, ele tá morto!
- O que?! Não é
possível! Ele tava bem hoje de manhã! Deixa eu ver aqui, me dá ele!
Não apenas o bebê
estava morto, mas estava se decompondo a olhos vistos, até ele, que era leigo,
sabia que era algo de mais de uma semana.
- Bá, como... como não
percebemos?
Ela, em lágrimas, não
respondeu.
- Bá, me lembro que
você o amamentou hoje! Bá, não... não entendo!
E numa rajada de vento,
o que havia de chama se apagou.