quarta-feira, 21 de março de 2012

Crônicas de uma Realidade: Utopia e Distopia

Chovia já há algum tempo. Os relâmpagos cortavam o firmamento e circundavam a esfera azul lá encima.

Havia na atmosfera algo de apocalíptico e sórdido, como se as regras estivessem sido apagadas e esquecidas, levando-as a uma não existência, destruindo e propiciando uma recriação. Eventos demasiadamente estranhos antecederam esse início de oblívio: uma explosão de luz envolveu os pilares, a esfera pintou-se subitamente de rosas escarlate e as nuvens começaram a cair.

Agora tudo era permitido.

Utopia corria. A chuva batendo pesadamente em seu rosto, suas roupas encharcadas. Quem primeiro chegasse aos pilares seria o mestre da esfera, seria indestrutível e absoluto.

Já era hora de estabelecer sua vontade. Todos aqueles seres inferiores que habitavam a enorme bola azul lá encima aprenderiam a viver em paz constante, em comunidade, em cooperação. Aprenderiam que não mais se deve competir, que deve-se contentar com o que se tem, que é inútil e ineficaz produzir tanto para depois destruir tudo. Ergueriam templos de harmonia, seriam todos, enfim, irmãos.

Viveriam todos sob suas leis e regras.

Por decreto seu estariam abolidos o mérito e a lei de causa e efeito, duas antagonistas no processo de homogeneização dos minúsculos seres lá encima. Decerto seus dois principais obstáculos impostos pela Realidade.

Mas agora que tudo havia mudado...

Por isso corria como se não houvesse amanhã. Seria ela a chegar primeiro nos pilares e a conquistar a esfera. Seria ela a única dona de tudo.

Desviava de árvores, pulava arbustos e saltava buracos e pequenas depressões, até que algo a derrubou.

Um vento frio de chuva fez-se sentir. Havia alguém ali, alguma entidade então completamente desconhecida e poderosa o suficiente para derrubá-la em sua corrida. Por instantes a única coisa presente foi a claridade escura das nuvens carregadas.

Então ela se revelou.

Nua e esquálida, carregando na face a morte desossada, a mulher a olhava de cima de um galho de árvore. Tinha na mão esquerda um punhal.

Utopia imediatamente sentou-se e olhou para aquela desconhecida que ousara interromper seu progresso. Entre os dentes cerrados rosnou um “quem é você?!”. A estranha, entretanto, limitou-se a descer da árvore e colocar-se diante de si. Olhada de perto sua figura era ainda mais mórbida: além da magreza doentia agora podia-se também observar as feridas abertas, algumas gangrenadas e infestadas de vermes, por todo o seu corpo. Sua boca era um sem número de aftas e abscessos. Seu cheiro era asqueroso.

- Quem é você? O que quer?! – rosnou mais uma vez Utopia.

A criatura deu um passo à frente. Ergueu o punhal e com um sorriso grotesco cortou uma fatia de sua própria perna. Sangue podre jorrou da nova ferida. Com as mãos em concha segurou parte do fluido e andou em direção à um rosto assustado marcado pela repugnância. Um passo, dois passos, três, quatro. Agachou-se, o sangue negro e fétido retido em suas mãos gangrenosas. Seus olhos se encontraram com os de Utopia, e então sorriu. Seus dentes de uma alvura ofuscante, sua gengiva de um vermelho vivo.

Utopia demorou para perceber o que acontecia, estava tão mesmerizada com o sorriso daquele ser, o sorriso mais lindo que já havia visto, que não percebeu que bebida daquele sangue venenoso e morto. Afundou-se tanto naquele sorriso que perdeu a noção do ser, do estar, do querer. Esqueceu quem era, quem foi, quem seria. Afundou-se tanto naquele sorriso que despertou nas trevas.

Dali há algum tempo aqueles que olhassem para aquele trecho da floresta viriam um vulto esguio arrastando algo que se assemelhava a alguém por entre as raízes, na direção dos pilares.

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