sábado, 27 de março de 2010

Paz, enfim

Seu pai sumira mais uma vez.
Estava cansada disso, não aguentava mais ver sua mãe chorando encima de uma cama, solitária velha e doente. Não aguentava mais as bebedeiras dele. Não aguentava mais a dor dos murros que ele lhe dava com “carinho”.
Não aguentava mais.
Eram três da manhã, a cidade dormia e ela ali, indo buscar o bêbado desgraçado que infelizmente veio a ser seu progenitor. Medo de ser estuprada. Medo de ser morta. Medo de sua vida.
Ruas vazias. A noite sem luar parecia comprimir seus pulmões e impulsionar suas pernas. Havia alguem seguindo-a. Vira-se. Ninguem. Segue. Um olho no caminho outro na sua sombra.
Um boteco caindo aos pedaços. Gritaria, a música dos bêbados e vagabundos. Uma prostituta falava ao celular na porta do estabelecimento, brigava com seu cafetão, na certa. É, com certeza ele estava ali.
Entra. Deitado encima de uma mesa, balbuciando grunhidos indistintos e balançando uma garrafa de cachaça estava um homem de meia idade, calvo, com vômito secando nos cantos da boca.
Ele.
Seu pai.
Ela vai até ele, o carrega. Seus olhos se encontram. Sente náuseas quando encara seus olhos vermelhos. Olhos de bêbado. Olhos sem memória. Como tudo pôde chegar a esse ponto?
O dono do bar grita. Aquele homem tem dívidas ali, não vai sair sem pagar.
Ela tira duas notas e entrega ao cara gordo atrás do balcão.
Vão embora.
Ela está cansada daquela vida. Olha para o rosto do sujeito que carrega. Um estranho.
Nota que sua camisa, além de vomitada, está com manchas de sangue. Cirrose.
Uma lágrima acha seu caminho para fora. Escorre. Morre.
Por que levar aquele homem de volta para casa? Justo ele que nunca fez nada de bom para sua “família”?
Ora, porque ele é seu pai!
Não. Não tem pai.
Olha para o gordo fedido apoiado em seu ombro. Ele olha para seu rosto. Um branco inquietante vaza de seus olhos.
Não estão muito longe do rio da cidade.
Frieza toma conta de sua alma.
Ora, bêbados não conseguem nadar!
Desvia-se do caminho. É o certo a fazer. Sem mais sofrimento, sem mais dor.
Apóia-o no alambrado. Olha para as águas poluídas. O lugar de descanso ideal para ele.
Sorri, sombria, e empurra o bêbado fétido no rio de excrementos.
Paz, enfim.

* * *

Um império!
Agora sim ele tem a dimensão total do que seu pai criou nesses 20 anos de trabalho na empresa. Holdings e trustes a rodo, muitas filiais, centenas e centenas de empregados. Percebe por que nunca nada lhe faltara.
Sempre teve o que queria. Às vezes até o que não queria, ou que nem sabia que queria. Pois é, agora ele era o novo chefe, o novo Senhor Almeida, o novo Patrão.
Senta-se na cadeira de seu falecido. Sim, sim, seu pai morrera. De enfarte. Coisa triste. Muito triste.
Nossa... Como era grande a sala de seu pai! E que vista! Mal pode esperar para comandar tudo aquilo!
Mas isso foi em outro tempo. Outra época. Outra mentalidade.
Hoje, 30 anos passados, não consegue mais sentir a empolgação de antes. Não enxerga mais o império. Como Roma, este já caiu faz muito tempo. Holdings? Não mais, apenas uma fábrica têxtil. Trustes? Só rindo.
Não tem mais nada. Nada.
Ele foi bem sucedido em destruir tudo aquilo que estava garantido.
Deus, como pôde ser tão cego?
Tem uma esposa mal caráter, que o trai com certeza, tem dois filhos que mais lhe parecem inquilinos (melhor, parasitas!), seu dinheiro vazou pelo ralo ou queimou nas fornalhas.
Senta na grande sala de seu pai.
A vista continuava a mesma. A cadeira continuava a mesma. A sala continuava a mesma.
Só ele mudara. Só ele testemunhara seu apocalipse pessoal.
Abre uma gaveta.
.38espiando por debaixo de uma pilha de dívidas.
Tentação. Cede.
Lentamente leva o cano à boca. Revólver cromado, tinha sido de seu avô.
Sorri, sombrio e aperta o gatilho.
Paz, enfim.

* * *

“Eu não quero morrer um homem solitário” pensa.
Havia dedicado sua vida inteira para a Igreja e, agora que a velhice chegara, começava a se arrepender disso.
70 anos. 50 se resguardando sob a batina, fugindo do mundo, fugindo de si mesmo. Deus... que desperdício de vida! Não tem família, não acredita mais no ideal católico, sente-se vulnerável, frágil.
A Igreja é corrupta. Antro de pedófilos, ladrões, obsecados e perturbados. Ele é um dos poucos que se salva. Ainda.
Sentado em sua cama, olha para o crucifixo pendurado na parede. Olha para Cristo. Olha para o sangue. Sangue... quanto desse líquido vermelho a Igreja não havia derramado?
Deus, como pôde estar tão enganado?
Deus... apenas uma força de expressão. Não crê mais na existência de tal ser. Não tem como.
Seus sacerdotes são a antítese do santo. Sua casa é o antro do pecado.
Deus... que monstro te tornastes.
Levanta, vai até o guarda-roupas e se troca. Tira sua fantasia de padre, coloca sua identidade de homem. Abre a porta, sai.
Nunca mais será visto por lá.
“Nunca mais entrarei num lugar como este” pensa.
Cidade. Noite.
Bordel... Deus, como sempre quis isso!
Entra.
Cheiro estranho. Cheiro bom. Cheiro de pecado. Não. Cheiro de sexo.
Sente-se homem pela primeira vez na sua vida.
As prostitutas olham para ele.
Ele olha para elas.
Escolhe uma.
Ele sorri, sombrio.
Sobe para o quarto com a sua acompanhante.
Paz, enfim.

* * *

7:00 da manhã.
Hora de acordar.
Hora de enfrentar o inferno.
Ela abre os olhos, cansada, e olha para o homem que dorme ao seu lado. Um desconhecido e mesmo assim seu marido.
Há 20 anos todos os dias começam iguais. Há 20 anos todos os dias se reciclam em algo pior que o anterior. Há 20 anos está morta.
Senta em seu sepulcro, põe os pés no chão e levanta. Há 20 anos... há exatos 20 anos optou por entrar na prisão que se chama casamento. Hoje é aniversário de casamento, meus pêsames.
Anda até a cozinha, pega a cafeteira, o pó de café e o coador. Um dia como outro qualquer. Daqui há uma hora ele se levantaria, iria beijá-la, abraçá-la e lhe dar seu presente. Ela iria fingir que gostou, iria lhe mentir sentimentos, iria abraçar sem sentir.
Mecânico. Robótico. Simples assim.
Ela queria mudar de vida. Não queria mais ser “a esposa”, queria ser “A Mulher”.
Ah Deus... por que essa vida miserável?
Deus? Ele a aprisionou nessa cela e jogou as chaves fora. Ele é o culpado.
Apronta a mesa. Flores, doces, pães, café fresco, suco, uma maravilha! Exceto, é claro, para ela.
Ela sentia a podridão de toda aquela limpeza, ela sentia a fraqueza de toda aquela vida, ela tocava o vazio que lhe tomava.
Vai até o banheiro. Olha-se no espelho. Como pôde ter caído na armadilha do casamento?
Como..! Ele acordou!
Rapidamente coloca sua máscara de esposa e esconde sua face de Mulher.
Ele a beija, ela retribui. Ele diz que a ama, ela mente. Ele lhe traz um presente, ela sente o ódio.
Tomam o café. Ele se arruma. Sai.
Sozinha de novo.
Mulher de novo.
Procura um meio de sair de sua cela, de reviver. Espera que os vermes não tenham devorado muito de sua alma.
Toma uma decisão, vida em dia de enterro.
Sorri, sombria. Pega algumas roupas, maquia-se e sai.
Paz, enfim.