quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Lugares Vazios



Algumas pessoas me perguntam por que eu parei de escrever. 

Os motivos são variados, indo desde um longo hiato criativo (que se arrasta por quase cinco meses) a ideias mais ligadas a imagens e expressões não verbais, mas nada disso faria com que eu abrisse mão de publicar os contos, poemas, crônicas e artigos de opinião.


O principal motivo que me fez abrir mão do blog e das não sei quantas páginas de projetos (alguns nem tanto) inacabados foi a sensação cada vez maior que escrevia e falava para um muro. Um muro de futilidades, um muro de restrições morais, um muro de pobreza intelectual, um muro de piadas rasas, um muro de urgências desimportantes e de risos tristes em fotos de éter.


Parei de escrever por causa do muro que construíram em volta do mundo. Parei de escrever porque minhas palavras apenas ecoavam num espaço oco de vida, desprovido de cor.


"What shall we use to fill the empty spaces, where waves of hunger roar?"

terça-feira, 14 de maio de 2013

A mídia da vez: Maioridade Penal


Pois bem, já que estou com mais um bloqueio criativo em relação à quarta (e última) parte de Cinza, vou interromper a ordem das postagens pra me pronunciar acerca do tema que está mais “na moda” da mídia: a redução da maioridade penal.

Minha opinião é controversa? Sim. Mas também tento ser o mais realista possível.

Existem, ao meu ver, dois polos extremamente opostos nesse debate: os fanáticos, utópicos e absolutistas morais dos direitos humanos e, no lado oposto, o discurso popular mobilizado pelas diversas formas de mídia, poder público e estatísticas divulgadas.

De um lado pede-se, a grosso modo, que ignore-se os delitos, que são apenas crianças, que não sabem o que fazem. Do outro há uma clemência por justiça, pelo encarceramento, pela limpeza.

O que eu penso disso? Ambos os lados têm seus pontos corretos mas, na minha opinião, a redução da maioridade penal é o mais acertado a se fazer no momento.

Por que eu, um estudante de psicologia, comprometido com o futuro do país e da sociedade, acredito que a redução seja a melhor opção no momento?

Porque há, de fato, um aumento substancial no índice de crimes cometidos por menores, porque, recentemente, eles saíram do papel de apenas bodes expiatórios para chefes de esquema, dada sua invulnerabilidade penal, e estão tocando o terror. Quando apreendidos, riem, fazem escárnio ou, no mínimo, dizem-se arrependidos enquanto em pouco tempo muitos voltam a cometer os mesmos delitos. Mas isso irá resolver o problema da criminalidade? Não.

Em seus estudos, Skinner teorizou e comprovou que as práticas sociais do nosso mundo ocidental estão muito mais focadas no que os behavioristas chamam de Controle Aversivo, ou seja, punições, castigos, supervigilância com os erros e pouco incentivo nos acertos. O encarceramento é uma das mas severas aplicações deste conceito, já que priva o indivíduo do sentimento de liberdade. Juntando essa privação com o ambiente quase sempre violento e desumano das casas de custódia, a probabilidade de sentimentos, pensamentos e comportamentos violentos virem a ocorrer se torna maior e, já que o nosso meio social não tende de modo algum a reforçar comportamentos contrários (principalmente aqueles direcionados para o “bem” da comunidade), a tendência é se manter nesse círculo vicioso.

O que me faz ser contra o discurso (e geralmente contra muitas das propostas dos direitos humanos) é a total e utópica acepção que eles têm de ser humano. Muitas vezes me parece que eles creem que há algum tipo de “natureza humana” e que ela é “boa”, logo, se ignorarmos o que está aí, os comportamentos apresentados pelos criminosos e delinquentes juvenis de hoje, apenas com uma reestruturação do sistema (que, para eles, parece que pode ocorrer num passe de mágica) tudo mudará. Vejam bem, o controle aversivo não é a melhor prática para ensinar ou suprimir novos comportamentos, mas está longe de ser dispensável para a regulação social. Embora o reforçamento positivo (oferecer consequências favoráveis â manutenção de determinado comportamento em situações semelhantes) e a extinção operante (quando determinado comportamento deixa de ser reforçado e para de ocorrer) sejam os melhores modos de mudar o repertório comportamental de uma pessoa, há certas condições que o controle aversivo deve ser utilizado (nas questões de crimes graves, como roubo, furto ou homicídio, por exemplo), mas APENAS a aplicação de uma pena não satisfaz.

Qual a minha proposta então?

Reduzir por um período (digamos, de cinco a dez anos) a maioridade penal MAS, aliado a isso, promover uma série de mudanças no modelo prisional (tomando como exemplo os modelos nórdicos) e elaborar sistemas de ascensão cultural* (com uma mudança tanto nos modelos educacionais quanto políticos). Se feito do modo correto, nessa década de mudanças haveria uma significativa redução dos índices de violência, mas aí esbarramos em um (eterno, ao que parece) empecilho do nosso triste país: os responsáveis pelo sacrossanto Estado Democrático brasileiro.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Cinza #3: Dor


Naquela manhã abafada o Porão estava irrespirável.

Porão era apenas o apelido carinhoso dado pelos guardas àquele apertado buraco escavado no chão sob a antiga sede da fazenda, com nove metros quadrados e revestido com cimento de má qualidade. O teto era baixo, mas alto o suficiente para que um homem de 1,85 ficasse em pé, sua cabeça separada do teto apenas por dois dedos. Milhares de cheiros se confundiam naquele ambiente abafado: fezes, urina, suor, sangue e o tênue, quase imperceptível, cheiro de morte; cheiro dos antigos moradores daquele “adorável” Porão. O único comongol existente era ineficaz em dissipar o odor fétido do lugar. A iluminação era escassa.

Em uma parede ficava a porta, única entrada e saída. Era feita em ferro maciço, recoberta de chumbo e com material acústico à prova de som. Na parede oposta ficava um emaranhado de correntes, algemas e um catre. E isso era tudo.

Poucos sabiam da existência do Porão, menos ainda sabiam dos “inquilinos” hospedados. O movimento era constante, era um lugar muito requisitado, mas naquele dia um alvoroço fora do comum chamara mais a atenção para aquele lugar: haviam capturado o único sobrevivente de um dos inúmeros e perigosos grupos insurgentes que ameaçavam a nação.

Nesta manhã haveria choro e ranger de dentes.


***


O mundo era um capuz preto. Distinguia apenas os sons, passos descendo degraus de uma escada. Seu ombro e perna ainda doíam bastante, mas haviam estancado o sangramento, parece. Não conseguia organizar direito o pensamento, tudo ainda era um grande borrão de imagens, sons e dores, mas sabia que havia sido capturado. Por quê?

Um rangido agudo interrompeu seus pensamentos. Atrito de metal contra metal.

Subitamente, os braços que o levavam jogaram-no, e ele se chocou contra a superfície áspera e irregular do chão daquele cômodo. O cheiro era nauseante. Tiraram o capuz que cobria sua cabeça, mas ainda permanecia algemado. Ao ver onde estava seu coração disparou, lembrou-se do motivo pelo qual optara viver e imediatamente soube que fora uma escolha ingênua. Não sairia daquele lugar.

Seu corpo esmoreceu, suas poucas forças o abandonaram. Foi se arrastando para longe dos dois guardas, que calmamente, andaram até ele e o prenderam nas correntes. Esperava ver sorrisos de vitória, mas viu apenas rostos sérios com uma sombra de pesar nos olhos. Seria... compaixão?

Sua esperança acendeu, uma trêmula luz fraca no escuro do sufocante Porão. Pensou em implorar, mas verbalizou apenas um “me sinto fraco... preciso... de água”. Inútil. Os guardas viraram-se e saíram do cômodo, fechando a pesada porta atrás deles com mais um ranger estridente.

Estava só naquela masmorra.


***


A janela aberta deixava o pouco vento daquela manhã entrar. As cortinas, presas com fitas douradas e vermelhas, balançavam vagamente quando alguma brisa entrava na sala.

Era ampla, com duas paredes cobertas de livros, dossiês e informações sigilosas organizados em cinco níveis de prateleiras de madeira maciça. Nela havia uma mesa ampla de madeira escura e uma cadeira também grande. Posicionada perpendicularmente à janela ficava uma poltrona de couro e era lá que ele estava, a fumaça de seu cachimbo elevando-se lentamente em curvas etéreas, mesclando-se gradativamente com o invisível ar daquela quente e bela manhã de verão.

“Como queria estar em casa... como queria ser mais um trabalhador comum, com a crença na ignorância....”, pensou, “... como não queria ter que cumprir minha função. Como gostaria de não ter me envolvido nisso...”, suspira, “... como gostaria de ter uma noite de paz.”

Levanta-se, o peso do mundo em suas costas, sua consciência uma bola de chumbo arrastando seus passos, no seu rosto uma expressão tranquila traída por olhos tristes de estátua. Eram apenas jovens, meninotes saídos das fraldas, ainda cheirando a leite... mas já havia matado vários. Por mais que lavasse, haveria, para sempre, sangue em suas mãos.

O carpete que cobra o chão da sala abafava seus passos. Com um gesto tranquilo, girou a maçaneta da porta, depositou o cachimbo numa mesinha de canto e saiu.

A sombra da Morte em seus calcanhares.

***

Acorrentado á parede, com sede, fome, calor e ferido.

Sentia-se um velho derrotado, apesar dos vinte e poucos anos. “Apesar de tudo é melhor viver”, pensava tentando forçar algum pensamento salvador, “quando eu sair daqui... quando eu sair daqui vou voltar à luta! Vou voltar a servir à causa!”.

A pouca luz que entrava pelo comongol era suficiente apenas para dar-lhe uma pouca noção do cubículo apertado em que se encontrava. Sabia onde estava. Sabia o que eram aquelas manchas amarronzadas no chão e no catre no qual sangrava. Sabia o que havia acontecido àqueles que estiveram lá antes dele. Não queria morrer ali.

“Não vou morrer aqui. Não posso morrer aqui! Nem que eu tenha que...” não sabia o que dizer. Não sabia o que poderia fazer para sair dali. Nunca saíam dali.

“Eu vou morrer aqui. Eu vou apodrecer em algum lugar desse terreno. Eu já estou morto”.

A porta se abriu. A sombra da Morte lhe sorria.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Cinza #2: Ideologia


Sentado na penumbra de seu quarto, observava um ou outro carro passando pelo viaduto vazio que se erguia diante de sua janela. A insônia sempre fora sua companheira de vida, desde a infância. A insônia sempre lhe ajudara a ver o mundo como realmente era, sem as pinturas dos dias ensolarados. A insônia sempre o fez ser superior à maioria.

Estava tudo pronto. Ele pacientemente esperava o romper do dia para, junto com seus camaradas, executar mais um plano, dar mais um passo rumo à liberação.

Democracia? Não... democracia não era uma opção para um mundo como esse. Nisso os dirigentes haviam acertado, apenas não na natureza do regime.

Ditadura... sim, ditadura! Poder para a base da pirâmide!

Mas ao mesmo tempo sabiam que a massa não tinha competência para se governar. A massa é massa. A massa é gado, peões de manobra, e eles saberiam se utilizar disso. Precisavam de força, precisavam de vozes, precisavam de músculos, não de olhos, ouvidos ou intelectos.

Os seus três camaradas dormiam em colchões espalhados ao acaso pelo assoalho frio daquele apertado apartamento alugado. No banheiro, as armas estavam empilhadas num canto, dentro de uma sacola. Armas velhas e enferrujadas: dois revólveres, uma pistola dos anos 40 e uma rústica submetralhadora, que roubaram do baú de recordações do avô de um de seus colegas.

Ele apenas observava. Se tudo desse certo sairiam ilesos, com mais armas e dinheiro, se não... morte era o destino mais adequado. Melhor que apodrecer nos porões-masmorra...

Um de seus comparsas acordou e, ainda sonolento, sugeriu que dormisse um pouco, que precisavam dele no seu melhor estado para a investida do dia seguinte. Brusca e secamente mandou-o calar a boca e voltar a dormir, sem sucesso. Da boca de seu camarada saíam perguntas imbecis e incômodas, questionamentos sobre seus motivos, suas filosofias, suas crenças, sua determinação... levantou-se, foi até ele, respiração pesada, punhos cerrados, uma aguda irritação em seu peito por causa da meditação interrompida, um rosto sereno, assustador. Parou diante do inoportuno questionador e disse, num tom calmo, pontuando bem as palavras: “Por meus objetivos, eu mataria minha família inteira”.

Depois disso nenhuma palavra a mais foi proferida.


***


Tarde demais, tudo deu errado.

Deitado de bruços no concreto quente da calçada, com metade do rosto no sangue de seus companheiros e balas em sua perna direita e ombro esquerdo, seu futuro parecia traçado: a morte. Era preferível morrer, pelo bem da causa. Todos os outros haviam morrido, só ele continuava vivo. Isso era injusto, mas também... também era uma oportunidade! Ele não queria morrer tão jovem, quem poderia saber o que o futuro lhe reservaria?

Em frações de segundos tudo poderia ter acabado ali. Bastava um movimento rápido de seu braço direito e “bam”, morto por movimentos bruscos. Mas ele optou por viver. Melhor seria se fosse o único sobrevivente de um ato heroico, melhor ser ícone, líder!

Mãos fortes agarraram-no pelos braços e seu ombro gritou a dor da carne, sangue ainda saía dos locais atingidos. Estava tonto, provavelmente pela perda de sangue, mas estava, apesar de tudo, satisfeito. “Matei meus camaradas, mas meu nome irá permanecer entre os vivos!”.

Com um baque seco, quando foi jogado no fundo da viatura, tudo escureceu, firmou os pés na terra de Hipnos.


terça-feira, 5 de março de 2013

Cinza #1: Dever


Era bom estar em casa.

Era bom sair, uma vez por mês que fosse, daquele lugar e estar com sua esposa e filhos.

Casa.

Cheiros, gostos, músicas, sorrisos, sentimentos...

Era muito bom estar em casa.

Acordado, ainda deitado na cama, ouvia os barulhos da cidade. Carros passando pelas ruas de paralelepípedo, vendedores de jornal gritando as ultimas manchetes, vozes indistintas dos pedestres...

Dentro de casa, ao seu lado, sua mulher ressonava num sono tranquilo, o sono dos justos. Ele, por outro lado, não conseguiu dormir direito e acreditava que não conseguiria mais ter uma boa noite de sono para o resto de sua vida.

Seu trabalho o consumia.

“É tudo para o bem comum. É com a visão no futuro que tenho que fazer tudo aquilo que me é ordenado, sem hesitar, sem questionar” dizia para si mesmo todos os dias. Cumpria com suas obrigações como esperado, até demonstrando uma certa alegria nisso, mas sentia-se mal toda vez. Seu estômago embrulhava sempre que voltava àquele pedaço de terra.

De repente se percebeu fitado por dois profundos olhos azuis. Dois olhos azuis que amava. Pelo olhar que lhe dava, ela sabia no que estivera pensando.

Suas mãos passearam por seu abdômen e chegaram ao seu rosto, sua boca aproximou-se do seu ouvido e sussurrou um “não se preocupe” carinhoso e sonolento. Beijaram-se.

Era realmente muito bom estar em casa.

***

Estava vestido com o uniforme, sozinho no escuro.

De pé no barro batido, ouvia rugidos, vozes e sussurros a sua volta. De repente uma luz. Viu-se cercado das pessoas que gostava: sua mulher, seus dois filhos, seus amigos do antigo trabalho.

Não mais. Rostos vazios e esfomeados o encaravam, xingavam e pediam piedade. Em suas mãos um chicote, mas não um chicote, a coluna vertebral de alguém. De sua mulher.

Gritou, o horror em sua alma o consumindo.

Acordou.

Era fim de madrugada, mas se recusava a voltar a dormir. Em vez disso, seguiu para a sala e relembrou, sentado em sua poltrona, essa curta semana que passara em casa, que passara em paz.

Pegou seu cachimbo na estante, encheu-o com tabaco, acendeu-o e pôs-se a tragar displicentemente, a fumaça levando embora cada traço de humanidade que havia reposto nesse curto tempo. Teria de ser impassível, de ferro, bronze e prata.

Os primeiros raios do dia começavam a se insinuar pelas janelas. Era o dia de voltar pro seu trabalho. Era o dia de voltar pro seu propósito. Era o dia de voltar ao seu sacrifício.

Sem mais sorrisos, sem mais alegria, sem mais amor. Seu sobretudo o zombava de dentro do guarda-roupas. Cinza ele teria que ser para passar por mais um mês.

Mais tarde, enquanto voltava para o isolado pedaço de terra que havia sido uma fazenda, apenas um pensamento se repetia em sua cabeça: “queria poder ter escrito um livro, plantado uma árvore e não ter feito parte disso”.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Medo Noturno


Ele estava deitado em sua cama, como em milhares de noites antes dessa. Pensava da forma vaga e imprecisa na qual pensamos quando estamos prestes a entrar no torpor do sono quando um pensamento sóbrio lhe cruzou a cabeça: “finalmente parece que tudo está se acertando”.

Sentiu alegria, alívio, serenidade. Medo.

“Medo?” pensou, voltando à plena consciência. “Medo do que? Por que eu teria medo de estar tudo bem?!”

Passou alguns minutos no escuro, o som do ventilador de teto como seu companheiro. Em sua cabeça milhares de vozes, todas suas, tentavam encontrar um “por que” pra esse medo súbito. Ansiedade aumentava em seu peito.

Após alguns longos minutos de angústia na escuridão a resposta lhe veio como um tapa: “tenho medo de que possa morrer justo agora. Tenho medo de perder esse conforto, tenho medo de não ser bom ou merecedor o suficiente. Tenho medo.”

Ficou estupefato com sua conclusão. Encarou o escuro longamente (e dessa vez sem suas várias vozes internas), deitou e tentou dormir. Depois de alguns minutos de ansiedade e estupefação, dormiu.

O dia seguinte nunca veio.