sábado, 8 de março de 2014

Destino

Não consegui acreditar quando soube da notícia.

Estava estampada nos jornais e, na TV, os âncoras do telejornal local davam os detalhes superficiais do acontecido.

E lá estava eu, estarrecido, com o café a meio caminho entre a mesa e minha boca. Os olhos indo da tela do aparelho na parede ao papel em minhas mãos e de volta à televisão.

“O que foi?” minha mulher me perguntou, mas não ouvi.

Vasculhando as lembranças as imagens e sensações foram voltando gradativamente. Quantos anos faziam? Dez? Vinte...? Não, não, uns quinze anos, no máximo. quinze anos desde que vi aquele rosto pela ultima vez. Um pouco mais de tempo desde que senti o toque daquelas mãos e daqueles lábios. E agora estava lá, morta, um pedaço de carne sob o chão.
“Ei, homem, o que foi?” repetiu. Nada entendi. Olhei debilmente para aquela mulher e, quase sussurrando, disse um “Oi?” confuso.

“O que foi? Do nada você ficou meio pálido... calado, parecia que tinha entrado em outra dimensão!” olhou para a TV. Os âncoras repetiam pela enésima vez os detalhes do ocorrido: “a mulher, ainda não identificada, chegou por volta das seis da manhã na padaria, pediu um café com leite e pão e, quando o atendente se virou, puxou um revólver .38 da bolsa, atirou em dois clientes e depois disparou contra a própria cabeça.”

Era ela! Meu Deus, era ela! Que ironia eu vir a “encontrá-la” depois de tanto tempo... e dessa forma.

“Ahn? Ah, nada não. Achei bizarro. Cada loucura que fazem hoje em dia, né não? Onde já se viu! Atirar em duas pessoas inocentes que só tomavam seu café da manhã e...” continuei um discurso genérico qualquer enquanto buscava me distanciar daquela sala de jantar na qual eu e minha esposa comíamos e assistíamos o telejornal. Me deslocava nas minhas lembranças, como que voltando várias páginas de um livro que ainda estava lendo só pra conferir uma informação lá nos capítulos iniciais, sem parar em lembranças prazerosas do passado recente, mas indo direto àquelas lembranças que ainda doíam.

Aos dezesseis anos tudo ainda é muito mais novo, mágico e assustador do que gostaríamos de admitir; e alguém como ela não se esquece como esquecemos o rosto daquele melhor amigo do jardim de infância, não. Uma pessoa como ela marca tal qual ferro em brasa.

Aos dezesseis anos foi que me deparei com ela pela primeira vez: espírito independente, livre, linda, assustadora, voraz. Ao mesmo tempo que me hipnotizava e me sequestrava as vontades, a voz e o ser, me repelia. Por um ano fui seu escravo sem saber. Ao fim de um ano eu havia saído de uma hibernação que me pareceu eterna.

Após isso brigamos, perdemos contato, voltamos a nos falar, traímos (a terceiros), brigamos novamente... e nos separamos. Nunca mais nos falamos. Não por falta de vontade minha, mas por falta de ação e, quando da ação, por intermédio do Destino, esse Eterno irônico.

E assim passaram-se os dias, meses, anos... até esse dia.

Vê-la naquele estado, recoberta de sangue, jogada como um porco depois do abate em um quanto qualquer, me era doloroso, mas punha fim a uma interrogação que me assombrou periodicamente nesses quinze anos sem vê-la ou ter notícias suas. Enfim sabia o que tinha acontecido com ela. Não que eu ficasse feliz, mas agora sabia que havia terminado. Qualquer possibilidade de nos entendermos ou de nos encontrarmos terminara ali, quando a bala rasgou as dobras cinzentas de seu cérebro. Fim. The end.

Quando voltei ao presente já estava no quarto. Lia o livro que havia comprado uma semana antes e percebi que estava uns dois capítulo além de onde havia parado na noite anterior, embora não lembrasse de nada que tinha lido. Ao meu lado, minha mulher dedilhava notas tristes de uma melodia que estava compondo.

Quando percebeu que estava prestando atenção em seus movimentos, olhou para mim e sorriu. “Você gosta? Tava pensando naquela moça do jornal... a da padaria, sabe? E me deu vontade de compor, acho que peguei o tom certo daquela situação...” e voltou a dedilhar, olhando com uma expressão de expectativa pra mim.

Como não dei resposta, insistiu: “E então? Gostou ou não?”.

E eu não consegui mentir.

“Essa melodia... é perfeita! Era exatamente assim que ela soava..! Quer dizer, deveria soar!” e as lágrimas me vieram aos olhos, mas as mandei pra baixo. Minha mulher me olhou com uma expressão de felicidade genuína. Colocou o violão de lado e se jogou por cima de mim. Começamos a nos beijar num frenesi como não fazíamos já há um tempo e em questão de poucos segundos as roupas estavam no chão.

O sexo foi intenso, sujo, visceral. Não me segurei. Depois, os corpos suados lado a lado na cama, cheiro de suor, gozo e esperma se misturando dentro do quarto, ela se vira e me diz carinhosamente “Eu te amo!”. Sentei na cama, fechei os olhos e disse “Eu te amo!”. Ela me abraçou.


Mal sabia que não era com ela que eu falava.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Soneto do Eterno Movimento

Mesmo que veja
Ainda há muito para ver
Mesmo que sinta
Ainda há muito para sentir

Mesmo que faça
Ainda há muito a se fazer
Mesmo que viva
Ainda há muito para viver

Quem para morre
E a dor engole
Se assim se fez

Quem segue vive
Como cego que visse
Mais uma vez

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

De Ciclos e Dores

Dói.

Está doendo.

Não é a dor de um hematoma, de uma contusão ou de um braço quebrado. É a dor sentida no fundo do vazio do peito, uma dor sentida nas memórias, nos sorrisos, beijos e brigas.

É a dor de saber que se fez o bem, embora pareça ser o mal. É a dor de desacostumar com o que se estava acostumado. É a dor de estar vivo e permanecer mudando. A cada nova transformação, uma nova dor e várias novas alegrias.

O fechamento do ciclo é necessário. Digo isso a mim mesmo. É difícil, mas nunca ouvi ninguém dizer que a vida é fácil.

Para ganhar muitas vezes precisamos perder. Perdendo sempre ganhamos experiência, sempre ganhamos novas dores, novos sentimentos.

Dor e alegria são os temperos que dão gosto ao nosso dia-a-dia.

Dor de um recomeço.

Dói, ainda dói. Mas a dor de hoje se converte na experiência de amanhã.


Dói, ainda doi. Mas no futuro o que existirá será um sorriso distante no Tempo.