Era bom estar em casa.
Era bom sair, uma vez
por mês que fosse, daquele lugar e estar com sua esposa e filhos.
Casa.
Cheiros, gostos,
músicas, sorrisos, sentimentos...
Era muito bom estar em
casa.
Acordado, ainda deitado
na cama, ouvia os barulhos da cidade. Carros passando pelas ruas de
paralelepípedo, vendedores de jornal gritando as ultimas manchetes, vozes
indistintas dos pedestres...
Dentro de casa, ao seu
lado, sua mulher ressonava num sono tranquilo, o sono dos justos. Ele, por
outro lado, não conseguiu dormir direito e acreditava que não conseguiria mais
ter uma boa noite de sono para o resto de sua vida.
Seu trabalho o
consumia.
“É tudo para o bem
comum. É com a visão no futuro que tenho que fazer tudo aquilo que me é
ordenado, sem hesitar, sem questionar” dizia para si mesmo todos os dias.
Cumpria com suas obrigações como esperado, até demonstrando uma certa alegria
nisso, mas sentia-se mal toda vez. Seu estômago embrulhava sempre que voltava àquele
pedaço de terra.
De repente se percebeu
fitado por dois profundos olhos azuis. Dois olhos azuis que amava. Pelo olhar
que lhe dava, ela sabia no que estivera pensando.
Suas mãos passearam por
seu abdômen e chegaram ao seu rosto, sua boca aproximou-se do seu ouvido e
sussurrou um “não se preocupe” carinhoso e sonolento. Beijaram-se.
Era realmente muito bom
estar em casa.
***
Estava vestido com o
uniforme, sozinho no escuro.
De pé no barro batido,
ouvia rugidos, vozes e sussurros a sua volta. De repente uma luz. Viu-se
cercado das pessoas que gostava: sua mulher, seus dois filhos, seus amigos do
antigo trabalho.
Não mais. Rostos vazios
e esfomeados o encaravam, xingavam e pediam piedade. Em suas mãos um chicote,
mas não um chicote, a coluna vertebral de alguém. De sua mulher.
Gritou, o horror em sua
alma o consumindo.
Acordou.
Era fim de madrugada,
mas se recusava a voltar a dormir. Em vez disso, seguiu para a sala e relembrou,
sentado em sua poltrona, essa curta semana que passara em casa, que passara em
paz.
Pegou seu cachimbo na
estante, encheu-o com tabaco, acendeu-o e pôs-se a tragar displicentemente, a
fumaça levando embora cada traço de humanidade que havia reposto nesse curto
tempo. Teria de ser impassível, de ferro, bronze e prata.
Os primeiros raios do
dia começavam a se insinuar pelas janelas. Era o dia de voltar pro seu
trabalho. Era o dia de voltar pro seu propósito. Era o dia de voltar ao seu
sacrifício.
Sem mais sorrisos, sem
mais alegria, sem mais amor. Seu sobretudo o zombava de dentro do
guarda-roupas. Cinza ele teria que ser para passar por mais um mês.
Mais tarde, enquanto
voltava para o isolado pedaço de terra que havia sido uma fazenda, apenas um
pensamento se repetia em sua cabeça: “queria poder ter escrito um livro,
plantado uma árvore e não ter feito parte disso”.
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