terça-feira, 5 de março de 2013

Cinza #1: Dever


Era bom estar em casa.

Era bom sair, uma vez por mês que fosse, daquele lugar e estar com sua esposa e filhos.

Casa.

Cheiros, gostos, músicas, sorrisos, sentimentos...

Era muito bom estar em casa.

Acordado, ainda deitado na cama, ouvia os barulhos da cidade. Carros passando pelas ruas de paralelepípedo, vendedores de jornal gritando as ultimas manchetes, vozes indistintas dos pedestres...

Dentro de casa, ao seu lado, sua mulher ressonava num sono tranquilo, o sono dos justos. Ele, por outro lado, não conseguiu dormir direito e acreditava que não conseguiria mais ter uma boa noite de sono para o resto de sua vida.

Seu trabalho o consumia.

“É tudo para o bem comum. É com a visão no futuro que tenho que fazer tudo aquilo que me é ordenado, sem hesitar, sem questionar” dizia para si mesmo todos os dias. Cumpria com suas obrigações como esperado, até demonstrando uma certa alegria nisso, mas sentia-se mal toda vez. Seu estômago embrulhava sempre que voltava àquele pedaço de terra.

De repente se percebeu fitado por dois profundos olhos azuis. Dois olhos azuis que amava. Pelo olhar que lhe dava, ela sabia no que estivera pensando.

Suas mãos passearam por seu abdômen e chegaram ao seu rosto, sua boca aproximou-se do seu ouvido e sussurrou um “não se preocupe” carinhoso e sonolento. Beijaram-se.

Era realmente muito bom estar em casa.

***

Estava vestido com o uniforme, sozinho no escuro.

De pé no barro batido, ouvia rugidos, vozes e sussurros a sua volta. De repente uma luz. Viu-se cercado das pessoas que gostava: sua mulher, seus dois filhos, seus amigos do antigo trabalho.

Não mais. Rostos vazios e esfomeados o encaravam, xingavam e pediam piedade. Em suas mãos um chicote, mas não um chicote, a coluna vertebral de alguém. De sua mulher.

Gritou, o horror em sua alma o consumindo.

Acordou.

Era fim de madrugada, mas se recusava a voltar a dormir. Em vez disso, seguiu para a sala e relembrou, sentado em sua poltrona, essa curta semana que passara em casa, que passara em paz.

Pegou seu cachimbo na estante, encheu-o com tabaco, acendeu-o e pôs-se a tragar displicentemente, a fumaça levando embora cada traço de humanidade que havia reposto nesse curto tempo. Teria de ser impassível, de ferro, bronze e prata.

Os primeiros raios do dia começavam a se insinuar pelas janelas. Era o dia de voltar pro seu trabalho. Era o dia de voltar pro seu propósito. Era o dia de voltar ao seu sacrifício.

Sem mais sorrisos, sem mais alegria, sem mais amor. Seu sobretudo o zombava de dentro do guarda-roupas. Cinza ele teria que ser para passar por mais um mês.

Mais tarde, enquanto voltava para o isolado pedaço de terra que havia sido uma fazenda, apenas um pensamento se repetia em sua cabeça: “queria poder ter escrito um livro, plantado uma árvore e não ter feito parte disso”.

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