Naquela manhã abafada o
Porão estava irrespirável.
Porão era apenas o
apelido carinhoso dado pelos guardas àquele apertado buraco escavado no chão
sob a antiga sede da fazenda, com nove metros quadrados e revestido com cimento
de má qualidade. O teto era baixo, mas alto o suficiente para que um homem de
1,85 ficasse em pé, sua cabeça separada do teto apenas por dois dedos. Milhares
de cheiros se confundiam naquele ambiente abafado: fezes, urina, suor, sangue e
o tênue, quase imperceptível, cheiro de morte; cheiro dos antigos moradores
daquele “adorável” Porão. O único comongol existente era ineficaz em dissipar o
odor fétido do lugar. A iluminação era escassa.
Em uma parede ficava a
porta, única entrada e saída. Era feita em ferro maciço, recoberta de chumbo e
com material acústico à prova de som. Na parede oposta ficava um emaranhado de
correntes, algemas e um catre. E isso era tudo.
Poucos sabiam da
existência do Porão, menos ainda sabiam dos “inquilinos” hospedados. O movimento
era constante, era um lugar muito requisitado, mas naquele dia um alvoroço fora
do comum chamara mais a atenção para aquele lugar: haviam capturado o único
sobrevivente de um dos inúmeros e perigosos grupos insurgentes que ameaçavam a
nação.
Nesta manhã haveria
choro e ranger de dentes.
***
O mundo era um capuz
preto. Distinguia apenas os sons, passos descendo degraus de uma escada. Seu
ombro e perna ainda doíam bastante, mas haviam estancado o sangramento, parece.
Não conseguia organizar direito o pensamento, tudo ainda era um grande borrão
de imagens, sons e dores, mas sabia que havia sido capturado. Por quê?
Um rangido agudo
interrompeu seus pensamentos. Atrito de metal contra metal.
Subitamente, os braços
que o levavam jogaram-no, e ele se chocou contra a superfície áspera e
irregular do chão daquele cômodo. O cheiro era nauseante. Tiraram o capuz que
cobria sua cabeça, mas ainda permanecia algemado. Ao ver onde estava seu
coração disparou, lembrou-se do motivo pelo qual optara viver e imediatamente soube
que fora uma escolha ingênua. Não sairia daquele lugar.
Seu corpo esmoreceu,
suas poucas forças o abandonaram. Foi se arrastando para longe dos dois guardas,
que calmamente, andaram até ele e o prenderam nas correntes. Esperava ver
sorrisos de vitória, mas viu apenas rostos sérios com uma sombra de pesar nos
olhos. Seria... compaixão?
Sua esperança acendeu,
uma trêmula luz fraca no escuro do sufocante Porão. Pensou em implorar, mas
verbalizou apenas um “me sinto fraco... preciso... de água”. Inútil. Os guardas
viraram-se e saíram do cômodo, fechando a pesada porta atrás deles com mais um
ranger estridente.
Estava só naquela
masmorra.
***
A janela aberta deixava
o pouco vento daquela manhã entrar. As cortinas, presas com fitas douradas e
vermelhas, balançavam vagamente quando alguma brisa entrava na sala.
Era ampla, com duas
paredes cobertas de livros, dossiês e informações sigilosas organizados em
cinco níveis de prateleiras de madeira maciça. Nela havia uma mesa ampla de
madeira escura e uma cadeira também grande. Posicionada perpendicularmente à
janela ficava uma poltrona de couro e era lá que ele estava, a fumaça de seu
cachimbo elevando-se lentamente em curvas etéreas, mesclando-se gradativamente
com o invisível ar daquela quente e bela manhã de verão.
“Como queria estar em
casa... como queria ser mais um trabalhador comum, com a crença na
ignorância....”, pensou, “... como não queria ter que cumprir minha função.
Como gostaria de não ter me envolvido nisso...”, suspira, “... como gostaria de
ter uma noite de paz.”
Levanta-se, o peso do
mundo em suas costas, sua consciência uma bola de chumbo arrastando seus
passos, no seu rosto uma expressão tranquila traída por olhos tristes de
estátua. Eram apenas jovens, meninotes saídos das fraldas, ainda cheirando a
leite... mas já havia matado vários. Por mais que lavasse, haveria, para
sempre, sangue em suas mãos.
O carpete que cobra o
chão da sala abafava seus passos. Com um gesto tranquilo, girou a maçaneta da
porta, depositou o cachimbo numa mesinha de canto e saiu.
A sombra da Morte em
seus calcanhares.
***
Acorrentado á parede,
com sede, fome, calor e ferido.
Sentia-se um velho
derrotado, apesar dos vinte e poucos anos. “Apesar de tudo é melhor viver”,
pensava tentando forçar algum pensamento salvador, “quando eu sair daqui...
quando eu sair daqui vou voltar à luta! Vou voltar a servir à causa!”.
A pouca luz que entrava
pelo comongol era suficiente apenas para dar-lhe uma pouca noção do cubículo
apertado em que se encontrava. Sabia onde estava. Sabia o que eram aquelas
manchas amarronzadas no chão e no catre no qual sangrava. Sabia o que havia
acontecido àqueles que estiveram lá antes dele. Não queria morrer ali.
“Não vou morrer aqui.
Não posso morrer aqui! Nem que eu tenha que...” não sabia o que dizer. Não
sabia o que poderia fazer para sair dali. Nunca saíam dali.
“Eu vou morrer aqui. Eu
vou apodrecer em algum lugar desse terreno. Eu já estou morto”.
A porta se abriu. A
sombra da Morte lhe sorria.
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