Não
consegui acreditar quando soube da notícia.
Estava
estampada nos jornais e, na TV, os âncoras do telejornal local davam os
detalhes superficiais do acontecido.
E
lá estava eu, estarrecido, com o café a meio caminho entre a mesa e minha boca.
Os olhos indo da tela do aparelho na parede ao papel em minhas mãos e de volta
à televisão.
“O
que foi?” minha mulher me perguntou, mas não ouvi.
Vasculhando
as lembranças as imagens e sensações foram voltando gradativamente. Quantos
anos faziam? Dez? Vinte...? Não, não, uns quinze anos, no máximo. quinze anos
desde que vi aquele rosto pela ultima vez. Um pouco mais de tempo desde que
senti o toque daquelas mãos e daqueles lábios. E agora estava lá, morta, um
pedaço de carne sob o chão.
“Ei,
homem, o que foi?” repetiu. Nada entendi. Olhei debilmente para aquela mulher
e, quase sussurrando, disse um “Oi?” confuso.
“O
que foi? Do nada você ficou meio pálido... calado, parecia que tinha entrado em
outra dimensão!” olhou para a TV. Os âncoras repetiam pela enésima vez os
detalhes do ocorrido: “a mulher, ainda não identificada, chegou por volta das
seis da manhã na padaria, pediu um café com leite e pão e, quando o atendente
se virou, puxou um revólver .38 da bolsa, atirou em dois clientes e depois
disparou contra a própria cabeça.”
Era
ela! Meu Deus, era ela! Que ironia eu vir a “encontrá-la” depois de tanto
tempo... e dessa forma.
“Ahn?
Ah, nada não. Achei bizarro. Cada loucura que fazem hoje em dia, né não? Onde
já se viu! Atirar em duas pessoas inocentes que só tomavam seu café da manhã
e...” continuei um discurso genérico qualquer enquanto buscava me distanciar
daquela sala de jantar na qual eu e minha esposa comíamos e assistíamos o
telejornal. Me deslocava nas minhas lembranças, como que voltando várias
páginas de um livro que ainda estava lendo só pra conferir uma informação lá
nos capítulos iniciais, sem parar em lembranças prazerosas do passado recente,
mas indo direto àquelas lembranças que ainda doíam.
Aos
dezesseis anos tudo ainda é muito mais novo, mágico e assustador do que
gostaríamos de admitir; e alguém como ela não se esquece como esquecemos o
rosto daquele melhor amigo do jardim de infância, não. Uma pessoa como ela
marca tal qual ferro em brasa.
Aos
dezesseis anos foi que me deparei com ela pela primeira vez: espírito
independente, livre, linda, assustadora, voraz. Ao mesmo tempo que me
hipnotizava e me sequestrava as vontades, a voz e o ser, me repelia. Por um ano
fui seu escravo sem saber. Ao fim de um ano eu havia saído de uma hibernação
que me pareceu eterna.
Após
isso brigamos, perdemos contato, voltamos a nos falar, traímos (a terceiros),
brigamos novamente... e nos separamos. Nunca mais nos falamos. Não por falta de
vontade minha, mas por falta de ação e, quando da ação, por intermédio do
Destino, esse Eterno irônico.
E
assim passaram-se os dias, meses, anos... até esse dia.
Vê-la
naquele estado, recoberta de sangue, jogada como um porco depois do abate em um
quanto qualquer, me era doloroso, mas punha fim a uma interrogação que me assombrou
periodicamente nesses quinze anos sem vê-la ou ter notícias suas. Enfim sabia o
que tinha acontecido com ela. Não que eu ficasse feliz, mas agora sabia que
havia terminado. Qualquer possibilidade de nos entendermos ou de nos
encontrarmos terminara ali, quando a bala rasgou as dobras cinzentas de seu
cérebro. Fim. The end.
Quando
voltei ao presente já estava no quarto. Lia o livro que havia comprado uma
semana antes e percebi que estava uns dois capítulo além de onde havia parado
na noite anterior, embora não lembrasse de nada que tinha lido. Ao meu lado,
minha mulher dedilhava notas tristes de uma melodia que estava compondo.
Quando
percebeu que estava prestando atenção em seus movimentos, olhou para mim e
sorriu. “Você gosta? Tava pensando naquela moça do jornal... a da padaria,
sabe? E me deu vontade de compor, acho que peguei o tom certo daquela
situação...” e voltou a dedilhar, olhando com uma expressão de expectativa pra
mim.
Como
não dei resposta, insistiu: “E então? Gostou ou não?”.
E
eu não consegui mentir.
“Essa
melodia... é perfeita! Era exatamente assim que ela soava..! Quer dizer,
deveria soar!” e as lágrimas me vieram aos olhos, mas as mandei pra baixo.
Minha mulher me olhou com uma expressão de felicidade genuína. Colocou o violão
de lado e se jogou por cima de mim. Começamos a nos beijar num frenesi como não
fazíamos já há um tempo e em questão de poucos segundos as roupas estavam no
chão.
O
sexo foi intenso, sujo, visceral. Não me segurei. Depois, os corpos suados lado
a lado na cama, cheiro de suor, gozo e esperma se misturando dentro do quarto,
ela se vira e me diz carinhosamente “Eu te amo!”. Sentei na cama, fechei os
olhos e disse “Eu te amo!”. Ela me abraçou.
Mal
sabia que não era com ela que eu falava.
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