Estranho.
Ontem abri a minha caixa de
correspondência e encontrei uma carta endereçada a mim. Não, não é esse o fato
estranho, mas sim o conteúdo e a maneira com que a carta foi redigida (tinta
preta, caneta hidrográfica, em letras calmas e redondas), além do nome do
remetente (“Amor”).
Num primeiro momento jurei
que era uma piada, alguma perturbação de amigo, essas coisas, então abri, bem-humorado,
e li. O conteúdo dela é o que vem a seguir:
“Caro humano,
Você (e toda sua espécie) me
conhece. Ouve falar de mim desde que consegue se lembrar. Nas histórias infantis,
nos desenhos animados, nas novelas, filmes, livros... eu sempre fui, sou e
serei onipresente. Sou interpretado de várias formas, sou o álibi de todas as
loucuras (boas ou más), sou o pai e a mãe de toda a humanidade, sou o caos e a
morte de cada condenado. Não me importo que me concebam de várias formas, que
me deem uma pluralidade de sentidos tortos, que me usem num ato de morte, pois,
como dizem muitos de vocês, “o Amor deve ser livre!”. Livre, eu entendo, é ser
o que se quiser ser. No meu caso é ser o que vocês, humanos, querem que eu
seja.
Uma coisa, porém, me deixa
preocupado: estão querendo me aprisionar, me enlatar e me jogar nas
prateleiras. Como assim? Ora, olhe um pouco pra a população média ocidental! Experimente
dizer que eu aconteço com o tempo, que posso ser algo casual, que posso não ser
eterno, que posso nunca acontecer, inclusive! Essa concepção acerca de mim é
rechaçada, combatida, anulada. “O amor estava predestinado entre X e Y!” “O
amor é uma finalidade da vida!” é a resposta que você irá ganhar, meu caro.
Você provavelmente está se
perguntando se isso não seria uma atitude paradoxal minha, dirigir a minha ira
(sim, pois o Amor também pode ser Ódio) para uma forma de me conceberem. Digo-lhe
que não, pois essa não é uma forma de me conceber, mas sim de encarcerar, de me
reduzir, de me embelezar e, sobretudo, de me infantilizar! Me encarcera por não tolerar outras interpretações, me reduz
por me determinar, me embeleza porque não sou apenas rosas e corações, posso
muito bem ser fera, afinal és animal e me infantiliza pois lhes infantilizam.
Necessito que se levantem
vozes contra esse amor plástico que, descuidadamente, deixei gestar desde os
primeiros hinos românticos e agora me prende e os escraviza. Necessito que
digam que posso ser sujo, fera, mortal até. Preciso que me construam, cada um à
sua maneira e ao seu tempo. Preciso que de fato AMEM e não simplesmente vivam
numa ilusão ótica de uma realidade de cegos.
Abraços,
Amor”