- Mas que coisa não? Parece que afinal eu estava certa! – disse a primeira figura, dando um passo adiante.
A silhueta que vinha atrás nada disse. Manteve-se no mesmo lugar.
- Vê? Ele não está mais aqui! E com certeza você ouviu as ultimas palavras que o outro disse. Vê? Vê?!
- Com certeza há uma explicação racional para isso, irmã. Você sabe que tal coisa é impossível. Você sabe que essa situação é algo digno de ser criação sua. – falou o espectro nas sombras das árvores. – Pelas minhas leis isso é impossível. E tenho dito.
- E pelas minhas leis nada é impossível! – contra argumentou a outra figura.
- Ah, Ficção... se ao menos você pudesse parar de pensar em fantasias...
- Ah, Realidade... se ao menos você parasse e lesse poesias... – disse Ficção andando até o ponto onde o Presente estivera em pé minutos atrás. – Não me olhe com essa cara. Você sabe que gosto de rimas.
A Realidade deu enfim um passo a frente e foi para junto de sua irmã.
Apesar de terem a mesma idade eram bastante diferentes.
Ficção era um mistério. Ela era um camaleão de formas e humores. Ora jovem, ora velha, ora bonita, ora feia. Podia estar feliz e ao mesmo tempo triste, no mesmo momento que te abraçava podia estrangulá-lo.
A Realidade assemelhava-se a uma senhora de meia idade. Fios brancos brotando de suas têmporas e rugas no canto dos olhos. Vivia uma vida regrada, destinada a sempre obedecer e impor suas inflexíveis leis. Vivia de fatos.
- Vê que há duas pegadas? Uma aqui onde o Tempo estava e outra ali, onde o velho que dizia também ser o Tempo apareceu. Que diz disso, Realidade? – indagou a Ficção.
- Digo o que já disse – respondeu a outra com desdém – deve haver uma explicação racional para isso.
- E esta seria...?
- Não sei. Ainda.
Silêncio.
Um trovão longínquo se fez ouvir. As nuvens desabariam em breve.
- Realidade...
- Shh! Preciso pensar!
- ... desista. Eu estou certa.
Realidade virou-se e encarou sua irmã.
- Já te disse varias vezes: isso é impossível. Se houvesse ocorrido o que você supõe neste exato momento estaríamos presenciando não apenas a quebra da minha principal lei, mas também a minha morte. – sua voz era monocórdia, exprimia todo o tédio de quem já explicou a mesma coisa várias vezes. - Não vejo que lei alguma foi quebrada, tampouco sinto-me doente.
- Mas como você pode ter a certeza de que suas leis e suas vontades são soberanas?
- Porque sempre foi assim. Sempre será assim. – respondeu com no mesmo tom, virando-se.
- Você realmente acha isso?
- Eu realmente SEI isso.
Realidade proferia essas palavras através de um véu de certezas. No fundo não conseguia compreender o que acontecera. Será que a irmã estava certa? Será que era possível que driblassem dessa forma as suas leis? Isso alteraria todo o plano da existência! Tinha apenas de evitar essa ansiedade, essa insegurança. Precisava pensar.
Outro trovão se fez ouvir. Dessa vez mais próximo. Incrivelmente próximo.
As folhas farfalhavam com a passagem tempestuosa do vento. As nuvens estavam caindo.
- Ficção... – Chamou Realidade.
Nada.
- Ficção..?
Vento, barulho de folhas, trovões.
- Fic... – as silabas morreram em sua boca ao sentir aquela mão segurando e arrancando seu coração.
Jatos de sangue respingaram na terra da clareira, nas árvores próximas e nos pilares. Alguém ria.
Ficção ria. Sua face transfigurada. Olhos flamejantes num rosto amaldiçoado.
Realidade olhava para as nuvens negras. Não podia morrer, isso seria destruir tudo o que já fora criado. Isso seria o fim. Seu, da esfera, dos pilares, do bosque, de tudo. Seria o fim.
Arfou várias e várias vezes em busca de ar. Sentia-se um peixe pescado. Mordia o vento em busca de palavras. Depois de alguns minutos lutando contra o inevitável percebeu a chegada de mais duas figuras à cena. Sua visão, porém, já estava se apagando e tudo o que pode perceber foi uma voz em seu ouvido dizendo “adeus”.