sexta-feira, 30 de março de 2012

Crônicas de uma Realidade: Na Esfera

Ele corria. Sujo, ensanguentado, a ferida recém-cicatrizada em suas costas latejando, esfomeado, sem esperança. E ele corria.

As crianças o seguiam num misto de terror e fascinação, sem hesitar, sem olhar pra trás. Se tudo o que encontrariam seriam as mesmas certezas das cinzas, por que desviar o olhar do perigoso e incerto caminho adiante?

Tudo queimava, o ar feria os pulmões. Como tudo se deteriorou tão depressa?

Não havia mais cidades, não havia mais Estado, não havia mais civilização, mas ainda assim a guerra continuava. Era a incrível batalha para decidir quem morreria por ultimo.

Se ele não corresse com certeza não seria seu pequeno grupo. Tinha que achar algum abrigo em meio àquele terreno devastado e estéril. Fugiam há dias e a comida era mínima. Na primeira semana duas crianças morreram de cansaço e fome.

Foi surreal. Tudo é surreal.

Olhar para o passado e ver tudo se repetindo não exatamente da mesma maneira, mas com características bastante semelhantes. Foi como ler um livro e no dia seguinte perceber que aquilo não era apenas uma história, mas a realidade, mais objetiva do que jamais fora, palpável e palatável a qualquer um.

Um corvo bicando a carne podre de um imenso e global cadáver.

A noite se fundia com o dia, as chamas sempre ardendo, o céu sempre escuro, uma pintura de fumaça. De acordo com seu relógio seriam 4:30, mas da tarde ou da madrugada?

Andavam e andavam e andavam. Sob seus pés as cinzas, sobre suas cabeças a fumaça, ao seu redor as chamas, ultimo suspiro de um mundo que já fora criança. Suor, sangue e saliva se misturavam numa miscelânea de fluidos corporais.

Agora já não mais se nascia, apenas se morria.

Ainda podiam ser ouvidas bombas sendo detonadas aqui e ali. Continuação de algo que já perdeu todo o sentido há muito tempo.

Andavam, andavam e andavam, mas tudo o que encontravam era cinzas, fogo e fumaça.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Crônicas de uma Realidade: Utopia e Distopia

Chovia já há algum tempo. Os relâmpagos cortavam o firmamento e circundavam a esfera azul lá encima.

Havia na atmosfera algo de apocalíptico e sórdido, como se as regras estivessem sido apagadas e esquecidas, levando-as a uma não existência, destruindo e propiciando uma recriação. Eventos demasiadamente estranhos antecederam esse início de oblívio: uma explosão de luz envolveu os pilares, a esfera pintou-se subitamente de rosas escarlate e as nuvens começaram a cair.

Agora tudo era permitido.

Utopia corria. A chuva batendo pesadamente em seu rosto, suas roupas encharcadas. Quem primeiro chegasse aos pilares seria o mestre da esfera, seria indestrutível e absoluto.

Já era hora de estabelecer sua vontade. Todos aqueles seres inferiores que habitavam a enorme bola azul lá encima aprenderiam a viver em paz constante, em comunidade, em cooperação. Aprenderiam que não mais se deve competir, que deve-se contentar com o que se tem, que é inútil e ineficaz produzir tanto para depois destruir tudo. Ergueriam templos de harmonia, seriam todos, enfim, irmãos.

Viveriam todos sob suas leis e regras.

Por decreto seu estariam abolidos o mérito e a lei de causa e efeito, duas antagonistas no processo de homogeneização dos minúsculos seres lá encima. Decerto seus dois principais obstáculos impostos pela Realidade.

Mas agora que tudo havia mudado...

Por isso corria como se não houvesse amanhã. Seria ela a chegar primeiro nos pilares e a conquistar a esfera. Seria ela a única dona de tudo.

Desviava de árvores, pulava arbustos e saltava buracos e pequenas depressões, até que algo a derrubou.

Um vento frio de chuva fez-se sentir. Havia alguém ali, alguma entidade então completamente desconhecida e poderosa o suficiente para derrubá-la em sua corrida. Por instantes a única coisa presente foi a claridade escura das nuvens carregadas.

Então ela se revelou.

Nua e esquálida, carregando na face a morte desossada, a mulher a olhava de cima de um galho de árvore. Tinha na mão esquerda um punhal.

Utopia imediatamente sentou-se e olhou para aquela desconhecida que ousara interromper seu progresso. Entre os dentes cerrados rosnou um “quem é você?!”. A estranha, entretanto, limitou-se a descer da árvore e colocar-se diante de si. Olhada de perto sua figura era ainda mais mórbida: além da magreza doentia agora podia-se também observar as feridas abertas, algumas gangrenadas e infestadas de vermes, por todo o seu corpo. Sua boca era um sem número de aftas e abscessos. Seu cheiro era asqueroso.

- Quem é você? O que quer?! – rosnou mais uma vez Utopia.

A criatura deu um passo à frente. Ergueu o punhal e com um sorriso grotesco cortou uma fatia de sua própria perna. Sangue podre jorrou da nova ferida. Com as mãos em concha segurou parte do fluido e andou em direção à um rosto assustado marcado pela repugnância. Um passo, dois passos, três, quatro. Agachou-se, o sangue negro e fétido retido em suas mãos gangrenosas. Seus olhos se encontraram com os de Utopia, e então sorriu. Seus dentes de uma alvura ofuscante, sua gengiva de um vermelho vivo.

Utopia demorou para perceber o que acontecia, estava tão mesmerizada com o sorriso daquele ser, o sorriso mais lindo que já havia visto, que não percebeu que bebida daquele sangue venenoso e morto. Afundou-se tanto naquele sorriso que perdeu a noção do ser, do estar, do querer. Esqueceu quem era, quem foi, quem seria. Afundou-se tanto naquele sorriso que despertou nas trevas.

Dali há algum tempo aqueles que olhassem para aquele trecho da floresta viriam um vulto esguio arrastando algo que se assemelhava a alguém por entre as raízes, na direção dos pilares.

domingo, 11 de março de 2012

Crônicas de uma Realidade: Início e Fim

Em frente ao corpo murcho da Realidade, diante dos pilares sujos de sangue, no meio da clareira de terra pálida, Ficção ria. Ria como uma criança, como um demônio, como um sábio. Gargalhava tanto que suas extremidades formigaram. Gargalhava com tanta vontade que não percebeu as figuras sem forma em volta do corpo de sua irmã. Entre uma rajada de risos e outra cacarejava frases como “eu te disse!”, “como você era patética!” e “vê? Estou viva, os pilares estão de pé e aquela maldita bola azul ainda está lá encima!”.

De repente cessaram os risos. A face da Ficção estava triste. Era uma criança que acabara de perder toda a sua família. Lágrimas fluíam por sua face pálida. Deixou-se cair no chão e em silêncio regou aquela clareira estéril.

As duas figuras sem forma deslocaram-se até a fratricida e lhe levantaram pelos braços.

- OLHE – disse a presença a sua direita – OLHE PARA A ESFERA. O QUE VÊ?

- destruição – falou a presença a sua esquerda – você iniciou o processo de destruição.

Rosas escarlate contrastavam com o azul dominante.

- FRATRICIDA!

- fratricida!

Nesse momento a Ficção assumiu uma identidade solene de viúva. Olhou para a esfera e sorriu amargamente.

- LOUCA!

- ingênua!

- Vocês também não entendem, não é? – baixou a cabeça com resignação – tudo bem, vai acontecer tudo outra vez. Façam o seu trabalho.

Ao término dessa frase as duas figuras se uniram num abraço cósmico e engoliram toda a clareira.

Início e Fim reviveram os primeiros momentos da existência nessa rápida união eterna. Viram a criação da esfera, a forja dos pilares, o crescimento da floresta ao redor.

Início e Fim recriaram, em poucos instantes, o que havia se perdido há eras.

Início e Fim desapareceram como apareceram, deixando para trás dois bebês.

Duas irmãs.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Crônicas de uma Realidade: Realidade e Ficção

- Mas que coisa não? Parece que afinal eu estava certa! – disse a primeira figura, dando um passo adiante.

A silhueta que vinha atrás nada disse. Manteve-se no mesmo lugar.

- Vê? Ele não está mais aqui! E com certeza você ouviu as ultimas palavras que o outro disse. Vê? Vê?!

- Com certeza há uma explicação racional para isso, irmã. Você sabe que tal coisa é impossível. Você sabe que essa situação é algo digno de ser criação sua. – falou o espectro nas sombras das árvores. – Pelas minhas leis isso é impossível. E tenho dito.

- E pelas minhas leis nada é impossível! – contra argumentou a outra figura.

- Ah, Ficção... se ao menos você pudesse parar de pensar em fantasias...

- Ah, Realidade... se ao menos você parasse e lesse poesias... – disse Ficção andando até o ponto onde o Presente estivera em pé minutos atrás. – Não me olhe com essa cara. Você sabe que gosto de rimas.

A Realidade deu enfim um passo a frente e foi para junto de sua irmã.

Apesar de terem a mesma idade eram bastante diferentes.

Ficção era um mistério. Ela era um camaleão de formas e humores. Ora jovem, ora velha, ora bonita, ora feia. Podia estar feliz e ao mesmo tempo triste, no mesmo momento que te abraçava podia estrangulá-lo.

A Realidade assemelhava-se a uma senhora de meia idade. Fios brancos brotando de suas têmporas e rugas no canto dos olhos. Vivia uma vida regrada, destinada a sempre obedecer e impor suas inflexíveis leis. Vivia de fatos.

- Vê que há duas pegadas? Uma aqui onde o Tempo estava e outra ali, onde o velho que dizia também ser o Tempo apareceu. Que diz disso, Realidade? – indagou a Ficção.

- Digo o que já disse – respondeu a outra com desdém – deve haver uma explicação racional para isso.

- E esta seria...?

- Não sei. Ainda.

Silêncio.

Um trovão longínquo se fez ouvir. As nuvens desabariam em breve.

- Realidade...

- Shh! Preciso pensar!

- ... desista. Eu estou certa.

Realidade virou-se e encarou sua irmã.

- Já te disse varias vezes: isso é impossível. Se houvesse ocorrido o que você supõe neste exato momento estaríamos presenciando não apenas a quebra da minha principal lei, mas também a minha morte. – sua voz era monocórdia, exprimia todo o tédio de quem já explicou a mesma coisa várias vezes. - Não vejo que lei alguma foi quebrada, tampouco sinto-me doente.

- Mas como você pode ter a certeza de que suas leis e suas vontades são soberanas?

- Porque sempre foi assim. Sempre será assim. – respondeu com no mesmo tom, virando-se.

- Você realmente acha isso?

- Eu realmente SEI isso.

Realidade proferia essas palavras através de um véu de certezas. No fundo não conseguia compreender o que acontecera. Será que a irmã estava certa? Será que era possível que driblassem dessa forma as suas leis? Isso alteraria todo o plano da existência! Tinha apenas de evitar essa ansiedade, essa insegurança. Precisava pensar.

Outro trovão se fez ouvir. Dessa vez mais próximo. Incrivelmente próximo.

As folhas farfalhavam com a passagem tempestuosa do vento. As nuvens estavam caindo.

- Ficção... – Chamou Realidade.

Nada.

- Ficção..?

Vento, barulho de folhas, trovões.

- Fic... – as silabas morreram em sua boca ao sentir aquela mão segurando e arrancando seu coração.

Jatos de sangue respingaram na terra da clareira, nas árvores próximas e nos pilares. Alguém ria.

Ficção ria. Sua face transfigurada. Olhos flamejantes num rosto amaldiçoado.

Realidade olhava para as nuvens negras. Não podia morrer, isso seria destruir tudo o que já fora criado. Isso seria o fim. Seu, da esfera, dos pilares, do bosque, de tudo. Seria o fim.

Arfou várias e várias vezes em busca de ar. Sentia-se um peixe pescado. Mordia o vento em busca de palavras. Depois de alguns minutos lutando contra o inevitável percebeu a chegada de mais duas figuras à cena. Sua visão, porém, já estava se apagando e tudo o que pode perceber foi uma voz em seu ouvido dizendo “adeus”.