sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Crônicas de uma Realidade: Tempo

Abaixo da grande esfera azul e líquida pontilhada de terras aqui e ali, bem abaixo do seu eixo de rotação jaz um bosque cheio de árvores, arbustos e pedras. No centro deste bosque há uma clareira e no centro desta clareira estão localizadas inúmeras colunas de mármore alvo que se estendem até a esfera lá encima.

O dia estava negro, nuvens carregadas circundavam os pilares. Ventava forte.

O Tempo observava com uma paciência infinita as nuvens se revolvendo no firmamento. Havia eras que não conseguia dormir, que não conseguia ter um minuto sequer de descanso. Desde que os seres da esfera começaram a assediá-lo, a estudá-lo e a medi-lo ele não conseguia dormir. Passaram-se tantos anos que sua insônia virou rotina.

No começo foram pequenas vozes de inquietação, mas cada vez mais vozes em cada vez mais línguas queriam conhecê-lo. As vozes que chamavam por ele tornaram-se tantas que houve uma época que pensou que fosse enlouquecer. Dia e noite, madrugada adentro, as vozes ricocheteavam em sua cabeça, faziam cócegas em suas costelas, beliscavam sua pele, puxavam-lhe os cabelos... foram épocas horríveis.

Demorou a se acostumar (coisas da juventude essa inquietação e revolta), mas já não se incomodava mais. A resignação da maturidade até fez com que chegasse a apreciar alguns atos daqueles que se submetiam às suas normas implacáveis.

Por isso, desde que se acostumou com seu status de mestre supremo dos seres daquela esfera azul e aguada, tudo o que faz é permanecer sentado, observando os pilares, a gigantesca bola azul e ouvindo a voz dos insignificantes mortais, seus únicos e fiéis servos.

Contrastando com o incômodo inicial, no período de transição entre a juventude e a maturidade, o Tempo teve várias pequenas alegrias. A primeira (coisa que ele concluiu apenas depois de sua maturidade, depois de anos de reflexão) foi o seu ultimo despertar.

Não se lembra da ultima vez que acordou, nem da ultima vez que dormiu. Na verdade evita bastante pensar nesse assunto. Mas será eternamente grato por aquele resto de lodo inteligente ter indagado da sua existência.

A segunda foram as observações estelares, que culminaram com a criação dos inúmeros tipos de calendário existentes naqueles primeiros séculos. Invenção fantástica os calendários. Foi o passo decisivo para a sua dominação sobre a esfera. Passo este que deram por ele.

A terceira e, provavelmente, mais significativa foi a invenção de um instrumento fatal para a submissão definitiva de todas aquelas bestas à atemporalidade do Tempo: o relógio.

- Atemporalidade do Tempo... – ouviu suas palavras repetidas por uma voz. Por sua voz. Mas não tinha sido ele quem falou. – até o dia de hoje você não tinha pensado nisso, não é?

E pela primeira vez em muitos e muitos milênios o Tempo se virou para encarar outro rosto. Movimentos lentos, dada sua inflexibilidade milenar, contrastaram com o salto de espanto que deu ao reconhecer o rosto velho e semi pútrido em frente ao seu.

O Tempo se encontrava com o Tempo.

- Ora, ora, por que o espanto?

O Presente se encontrava com o Futuro. Visão aterradora para o primeiro, refresco e remorso para o segundo.

- Somos o Tempo. Podemos ser e fazer qualquer coisa. Podemos ir e vir pelo fluxo de nossa própria vida. Fazemos o que os mortais tanto sonham em fazer. Você o sabe. Se minha memória não falha (e você sabe que não falha) a primeira vez que ouvimos alguém desejando fazer esse trânsito proibido foi na nossa infância.

O Presente ainda olhava embasbacado, sem poder acreditar no que via. Como viria a se tornar uma figura tão caquética, tão... velha? Será que as vozes o tinham enlouquecido, afinal?

- Não, não enlouqueceu. – respondeu o futuro – você está de frente com o seu futuro, com o futuro dessa esfera, desses pilares, de tudo o que existe. Essa é uma situação singular... – deu uma gargalhada seca de moribundo e continuou – Nós somos o Tempo. Como você mesmo observou, achamos que somos atemporais, mas não. Acaso não envelhecemos junto com essa azulada esfera? Não evoluímos? Acaso eu não sou uma versão putrefata de você? Acaso não somos dois Tempos olhando um para o outro, você com horror, eu com remorso? Envelhecemos com estes pilares, envelhecemos com as espécies de mortais. – olhou para as negras nuvens circulando as colunas brancas – E envelhecemos sem entender o fundamental sobre nossa natureza.

Confuso, o Presente nada conseguia falar. O Futuro entendia. A medida que ia se fazendo passar por essas novas situações as memórias vinham-lhe como se fossem antigas. Sabia das suas prováveis reações, sabia como provavelmente terminaria aquele encontro.

Subitamente o ar ficou parado. As nuvens congelaram, o bosque pareceu pulsar em ondas de cinza e roxo. Os pilares se alongaram, depois encurtaram, fizeram arcos psicodélicos e congelaram.

- O... o que é..? – foram as únicas palavras do Presente antes que ambos ele e o Futuro desaparecessem no ar.

Dos arbustos dois pares de olhos presenciaram todo aquele episódio. Dos arbustos sairam duas figuras não tão estranhas.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Crônicas de uma Realidade

É uma unanimidade. Todos, não importa se forem filósofos, astrônomos, físicos, médicos, jogadores de futebol ou estudantes, acreditam veementemente que os planetas e sistemas solares espalhados pela vastidão do universo permanecem em rotas semelhantes graças às forças de atração e repulsão, e que apenas em longos intervalos de tempo há algum evento cósmico realmente notável (a explosão de uma estrela, por exemplo). Não se ousa mais discordar dessa visão. Todos sabem da verdade, ela é plenamente observável.

A realidade é, e nada mais. Correto?

Provavelmente você respondeu que sim.

Talvez saiba que a resposta possa ser um não.

Verdade, realidade, confiabilidade... apenas palavras. Palavras essas que adquiriram significado importante e cada vez mais peso.

O que se prefere, uma verdade contada pelo seu inimigo ou a mentira do seu amigo? Um jornal que mostre a realidade ou um folhetim barato? Um profissional com um extenso currículo na sua área de atuação ou um recém-formado?

Verdade, realidade, confiabilidade... apenas visões. Visões essas que, de acordo com os interesses, com as experiências, influenciam todo o curso de um futuro.

E se eu lhes dissesse que para mim há algo que vai além do tempo-espaço? Que eu não vejo apenas as leis de atração e repulsão como as únicas responsáveis por manter o mundo no lugar e o sol no centro de tudo?

E se eu lhes dissesse que, acima de toda a ciência há um campo único e, espero, perpétuo e mutável? Que esse campo seria a consciência poética e filosófica, a consciência do ser, do ver, do ouvir, do sentir de verdade?

E se eu lhes dissesse que o que mantém a Terra em seu lugar, e nós encima dela, não são as leis da física, mas um conjunto de pilares que sustentam a nossa dita realidade?

Pois é tudo isso que lhes direi com essa nova série de crônicas.

Bem vindos e boa viagem.