quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Crônicas de um Lugar Comum #9

Abigobaldo gosta de queijo, mas seu amigo Eristófenes crê que abacaxi é melhor.
Um belo dia, durante uma conversa salutar, eles começam a discutir culinária e chegam ao ponto irredutível: Abigobaldo nunca abriria mão do queijo e das coisas que poderiam ser feitas com ele, enquanto Eristófenes defendia seus doces de abacaxi. A coisa de inflamou a tal ponto que ambos brigaram de vez e, cada um no seu canto, fundaram dois grupos: o de Abigobaldo voltado para todos os adoradores de queijo e o de Eristófenes para aqueles que partilhavam da cultura do abacaxi.

Anos passados, porém, o grupo criado por Eristófenes começa a perceber que o grupo dos que gostavam de queijo era significativamente maior que o deles, e, dessa forma, se sentiram prejudicados, já que os outros tinham maior espaço de divulgação e maior presença nos ambientes sociais. “Queijismo” foi o nome que deram à ideologia dominante e decidiram que, sob a bandeira libertadora do “Abacaxismo” essa situação hegemônica acabaria.

Mas enganaram-se aqueles que pensavam que Abigobaldo e seus seguidores ficariam quietos vendo toda essa mobilização. Ao perceber o risco que sua classe eles montaram uma estratégia de defesa: a cassação dos direitos dos adeptos do abacaixismo.

Preciso realmente dizer o que aconteceu?
Caos.
Muitos anos de luta armada, confrontos intermináveis e pilhas e mais pilhas de mortos amontoadas por todos os lados do país. Não havia lugar seguro. Tudo estava destruído, toda a cultura construída foi esmagada pelas pegadas dos queijistas e abacaxistas.

Trégua. Tratados de armistício.
O país se reconstrói, se reforma. Os dois grupos passam a coexistir pretensamente de maneira pacífica, mas conflitos esporádicos entre as alas mais radicais ainda são freqüentes.

Abigobaldo e Eristófenes agora estão velhos, esgotados e mutilados. O ódio pelos hábitos alimentares do outro suplantou até o amor pelos seus próprios. A luta perdeu o sentido, mas ainda persiste.

Nas câmaras parlamentares agora se fala de respeito mútuo, da declaração universal dos direitos alimentares, discursos muito bonitos, muito bem construídos, falas que emocionam os ouvintes. Tudo é lindo, cada um vive em seu mundo e a vida vai seguindo.
Até que surge Iorosvário com a seguinte proposta: nem queijos nem abacaxis, maçãs!

Considerando essa divergência das idéias comuns uma afronta, Abigobaldo e Eristófenes reatam sua amizade há muito perdida e decidem.............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................ad eternum

domingo, 4 de setembro de 2011

Crônicas de um Lugar Comum #8

Deus ex-machina*”.

Acordou. Teria ouvido algo?
O quarto estava silencioso, exceto pelo quase inaudível barulho do ar condicionado. Abriu os olhos e fitou o teto. Quando suas pálpebras estavam quase se fechando e o sono tomava seu corpo ele abriu os olhos no espanto de uma súbita lembrança.

“A reunião! Tenho a reunião às 8:00! Não posso me atrasar, tenho que saber se o Silva colocou todo o material no pen drive! O celular! Cadê a porra do celular!?”
Levantou-se, bateu o pé no cesto de lixo e xingou. Acendeu a luz e começou a revirar os bolsos de sua calça e do seu paletó. Nada. O desespero começou a tomar conta dele.
“Merda! Se eu não achar essa porra de celu...”. Sua mão encostou em algo quadrado com textura lisa. “Ahh, ótimo!”. Puxou o celular de dentro do bolso e, sem nem olhar para a tela, discou o número de seu colega. Após alguns segundos com o aparelho encostado na orelha estranhou não ouvir o clássico “tuuuu” de espera. Olhou então para o visor e, ao ver que não havia sinal de energia, arremessou o objeto contra a parede.

“Porra de celular! Que merda...! O computador!”
Correu para a sala, acendeu o abajur e moveu o mouse nervosamente até a tela se iluminar. Abriu a internet, entrou em seu email, digitou o que queria. “Mas... será que ele vai ler a mensagem antes da reunião? E se não ler? Preciso avisá-lo de maneira mais certa, preciso falar com ele! Mas... é melhor eu também mandar este e-mail.” Subiu o mouse para clicar no botão “enviar” mas, antes que pudesse fazê-lo, a energia acabou.

“Não acredito! Não, não pode ser!” Deu um murro no monitor, derrubando-o. Levantou-se bruscamente e correu ao telefone. Sem linha.
“Não, não, não, não! Isso não tá acontecendo! Não!” Pegou as chaves do carro e correu porta afora apenas para cair no negro abismo da não existência.

Acordou.
Seu coração palpitava, suas mãos tremiam. Havia dormido mais uma vez no escritório, o teclado estava empapado com uma mistura de saliva e suor.

“Mais uma vez... isso tem que parar...” Olhou em seu relógio de pulso e viu que eram duas horas da manhã. Precisava ter uma noite de gente.
Levantou, mas seu corpo despencou novamente na cadeira ao ver o que estava escrito na tela de seu monitor.

Deus ex-machina”.








*Termo que significa literalmente "Deus saído da máquina". É um instrumento dramático que era amplamente usado nas tragédias gregas, onde, não havendo resolução para os problemas expostos, uma divindade ou ser mitológico se apresentava e mudava místicamente os rumos da história.
No entanto, usei a expressão em seu significado literal.